Anna Apolinário é poeta, autora de Zarabatana (Patuá, 2016).

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Recentemente tive minha rotina e toda minha vida golpeada pelo inferno da contaminação por Covid 19, estive bastante debilitada, fui internada e necessitei de oxigenoterapia. Foi um período aterrorizante, o medo da morte é algo que te faz lutar sem limites, e eu pude superar e vencer a doença, graças às forças Divinas, minha família, meu companheiro, e profissionais de saúde que me deram total apoio e cuidados para que hoje eu esteja em plena recuperação. Agora percebo tudo de maneira diferente, e não posso deixar de citar essa experiência como algo que me faz repensar a cada instante, toda minha rotina e projetos, minha missão no mundo. No momento quero me reorganizar e continuar trabalhando, gosto de manter vários projetos simultâneos, através da Cia Quimera, da qual sou co-fundadora, quero fortalecer o entrelaçamento entre poesia, teatro e audiovisual, meu mais recente livro A Chave Selvagem do Sonho ganhará versão audiovisual, através da Lei Aldir Blanc, eu e minha equipe iremos trabalhar para finalizar e lançar o projeto em breve. Estive nas mãos da escuridão e retornei para respirar, brilhar e escrever muito mais, quero que meus dias se multipliquem em projetos, livros, vivências e narrativas poéticas. Estou viva e quero narrar a multiplicidade de histórias, erguer novos reinos sensíveis, quero que minha palavra continue a correr o mundo, dialogando com as pessoas. Que a poesia, o amor e a liberdade sejam sempre soberanos, que possamos nos apoderar da palavra e construir novas realidades, precisamos resgatar nossa humanidade e abandonar todas as formas de ódio e crueldade às quais temos sucumbido.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Busco me manter atenta aos gatilhos e influxos imagéticos, algo específico pode ser a centelha, gosto de traçar algum horizonte, então costumo eleger temas estruturantes para o livro, arquétipos e motes dominantes para a obra, mas sem mantê-los rígidos, gosto do movimento livre, sei que a convergência virá, então saboreio a imersão, sentindo cada nuance e sensação, sem pressa. Escrever um livro é visitar muitos lugares secretos, vivenciar os versos, tocá-los, lambuzando-se deles, afundar os dedos no novelo mágico da criação, os melhores poemas são sempre inesperados e imprevisíveis, nos raptam sem piedade e nos transformam para sempre.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
O ambiente rotineiro é meu escritório, com meus livros, ouvindo minhas playlists, porém gosto da ideia de escrever em qualquer lugar: numa praia, no meio da floresta, na montanha, próximo à uma fogueira, em conexão com os elementais da natureza, eu quero escrever poesia com todo o corpo, em êxtase sensorial e místico.
Há pouco tempo, comprei uma máquina de escrever, sempre foi um desejo antigo usar uma typewriter, e agora tenho minha Olivetti Lettera 82, que batizei como Laura, minha própria máquina de fazer delírios. Escrever à máquina é algo visceral e encantador, envolve todos os sentidos: você está lá suando batendo as teclas, usando a força de suas mãos, sente o cheiro da tinta, o cheiro do papel, precisa estar concentrada e atenta para não errar, pois não tem tecla de apagar, é uma aventura muito gostosa, a escrita adquire uma outra dimensão. Ainda gosto muito de escrever à mão e mantenho meus cadernos, porém usar a máquina de escrever me fez renovar meu processo de escrita, é tão vintage e tão charmoso, irresistível. Quando estou martelando meus poemas em Laura, me sinto invencível.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travada?
Através da identificação e afinidade de minha poética ao Surrealismo, recentemente comecei a criar poemas usando o método de escrita automática. O despontar do movimento surrealista foi alimentado fundamentalmente pela experiência da escrita automática, André Breton concebia-a como “signo de uma liberação do espírito necessária à criação poética. O automatismo tem valor positivo como mecanismo que permite escapar ao controle da consciência”. Ao mergulhar no processo de escrita automática, pude criar de maneira espontânea, frenética e imprevisível, me entregando à uma aventura inventiva extremamente desafiadora, instigante e libertadora, pude literalmente dinamitar todas as travas, e erguer dos escombros belos diamantes delirantes, explorando toda a potência de minha verve. Essa experiência de escrita automática me rendeu uma série de 25 poemas chamada Beijos de Abracadabra, em que cada poema foi escrito no tempo limite de cinco minutos, pude me jogar num transe mágico e devastador, e saborear uma vivência criativa deliciosamente ousada, fiquei radiante com o resultado e continuarei usando a técnica para escrever mais e melhor.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Cada poema tem uma respiração e um brilho singular, tenho apreço peculiar por cada trabalho. Posso citar a criação de meu segundo livro Mistrais (Prêmio Literário Augusto do Anjos, 2014), como símbolo de um grande salto na minha trajetória poética, Mistrais é uma tempestade corpórea, o genuíno rugido do meu coração selvático que me fez firmar os pés na arena da linguagem e seguir com furor. A partir daí pude avançar e criar Zarabatana (Patuá, 2016), através de um processo mais lancinante de dilaceramento experimental entre vida e construção poética, uma aventura visceral que reivindicou muito de mim, e da qual me orgulho muito, pelos caminhos que o livro percorreu, pelas conquistas e diálogo afetivo construído com os leitores.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém uma leitora ideal em mente enquanto escreve?
A escolha dos temas é guiada pela conexão de meu corpo psíquico e místico com as forças do Universo, tudo nasce de um chamamento muito íntimo e misterioso, envolvendo nuances e percepções atemporais sobre tudo que me cerca, a vida é a maior alavanca criativa. Posso citar a conexão com o feminino como um leitmotiv vívido e exponencial que atravessa toda minha obra, um fio condutor que expõe uma crescente busca pela individuação, empoderamento, resgate da ancestralidade da mulher selvagem, tessitura e enaltecimento dos saberes mágicos e místicos da mulher numa sociedade violentamente patriarcal. Há em meus livros, gumes envenenados, a lâmina-língua sempre dilacerante, flores encantatórias, ervas mágicas e magmáticas, o sussurro serpenteante de Lilith no deserto, matilhas de poemas farejando sangue e seiva na pele, uma dança incessante de ninfas nuas ao luar, e sobretudo a genuína força ancestral da mulher loba, insubmissa, selvática, soberana senhora de si e dos rituais com a palavra. A leitura incessante é a da pele, em avassaladora urdidura quimérica e metamórfica. Todas minhas células aquecem o sangue da poesia no corpo do mundo. Teço lugares de poder através da palavra, fortaleço algo indomável. Me sinto mais bruxa a cada livro que escrevo.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Meu processo criativo é muito íntimo e abstrato, gosto de manter os textos e rascunhos reservados e apenas ocasionalmente mostro a algum(a) poeta de confiança, considero legal a experiência de partilhar, porém creio que os manuscritos são chaves de um processo particular e pessoal e o caminho de lapidação e evolução na escrita deve ser percorrido e encontrado individualmente. O que me instiga é a percepção do leitor comum, aquele que irá receber o livro finalizado e publicado.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Durante a quarentena, no contexto sombrio de pandemia, em alguns raros momentos de desaceleração da rotina multitarefas, vivencio um precioso estado de recolhimento e então revisito minha vivência criativa ao longo destes dez anos de escrita e publicação de livros. Minha trajetória se inicia ainda na adolescência, através da construção imagética alimentada por leituras vorazes e variadas, sempre li de tudo, uma fome de gibi a romance. E então a sede pela escrita cresceu inevitável, através da tessitura de diários e poemas, em 2010 veio a concretização da primeira publicação em livro e partir daí, um caminho vertiginoso de produção criativa foi se delineando, novos livros, projetos, parcerias surgem e são fortalecidas constantemente. Agora, com luxúria e júbilo percebo-me, no espelho da criação, moira e demiurga, mordendo a maçã pura da Musa, flertando com o olhar fatal da Medusa, bacante rainha, entre flautas e zarabatanas, rugindo, dançando e caçando as chaves encantadas do sonho e os segredos selvagens dos versos e feitiços. O sentido de alteridade é pulsante: que minha voz encontre e levante muitas outras, mulheres miríades em mantra: navalhas afiadas lacerando todos os vultos violadores e opressores.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
A verdade é que sempre soube de meu poder de criação poética, e aprendi a lidar com isso ao longo do tempo, dominando essa força concebendo-a como algo sagrado, que vai além de mim mesma, uma chama infinitamente poderosa e ancestral que atravessa o mundo. A minha voz traduz o mistério que pulsa entre o visível o invisível e arquiteta revoluções, a criação poética é dádiva e êxtase, uma forma de comunicação subversiva, a mais grandiosa e incendiária aventura humana. Me sinto irmanada por grandes mulheres escritoras que me atiçam: Sylvia Plath, Joyce Mansour, Gilka Machado, Mar Becker, Marize Castro, alguns romancistas como Raduan Nassar, Murilo Mendes, ressonâncias do Surrealismo, Simbolismo, minha paleta de referências é extensa e envolve várias formas artísticas, como pintura, música, escultura, uma multiplicidade vibrante.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Minha recomendação permanente de leitura é literatura feita por mulheres, poesia e prosa contemporâneas produzida por mulheres de todo o Brasil, especialmente no Nordeste, deixo aqui dois nomes que me encantam: Marize Castro, na poesia e Heloísa Seixas, na prosa.