Anita Deak é escritora, editora de livros e roteirista, autora de Mate-me quando quiser (2014).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Durmo muito tarde, por volta das três da manhã, portanto não sou ninguém antes do meio dia. Jamais escrevo pela manhã, inclusive. A minha rotina matinal é dar bom dia aos meus gatos, ler alguma coisa, ouvir música, almoçar e, só depois do almoço, correr atrás da vida.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
À noite, sempre. Por volta das 22h. Eu sempre releio os três últimos capítulos que escrevi para afinar a voz do personagem. Não pratico exatamente um ritual, mas tenho a mania de colocar um roupão por cima da roupa. O roupão me lembra Hemingway escrevendo, e eu admiro a obra dele e acho fino.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo em períodos concentrados e não tenho meta de escrita diária. Tenho um prazo para terminar meu próximo romance (que se chama No fundo do oceano, os animais invisíveis), mas mesmo esse prazo é elástico. Na minha opinião, a vida já exige que a gente monte uma linha de produção para quase tudo. Quando vou para a Literatura, esqueço toda essa lógica cartesiana e fordista e deixo que o livro aconteça no tempo que tem de acontecer. Inclusive, para mim, o ócio é fundamental para a criação. Sinto que o livro está sendo trabalhado também nos momentos em que não escrevo. Ele começa a ser escrito muito antes que as palavras apareçam na tela do computador, pois há pensamentos que só assentam ou se desenvolvem se dou tempo para que certas conexões aconteçam na minha cabeça. Tem umas coisas curiosas que ocorrem também. Comprei uma gaiola de pássaro para usar como objeto decorativo em 2017. Ela sempre ficou pendurada na parede, vazia. Depois de um tempo, me acostumei a ela como objeto decorativo e não prestava mais atenção. Um ano depois, escrevendo uma das cenas mais tocantes do meu próximo romance, essa gaiola pousa no texto como uma metáfora certeira. Eu acabei de escrever e chorei copiosamente porque nunca tinha parado pra pensar na representação do objeto que eu tinha comprado ou porquê o tinha comprado. Gosto muito de psicanálise (sou autodidata), então acredito que a criação também surge do inconsciente. A gaiola era o meu inconsciente falando comigo. A cena do livro estava escrita na minha parede antes mesmo que eu soubesse que ia escrevê-la. Por isso, crio de forma despreocupada com o tempo, respeitando o trajeto de maturação das coisas. O inconsciente não se dobra a uma linha de produção, no meu caso. A gaiola precisou de um ano para se transformar num parágrafo. Outros trechos, graças a Deus, são mais rápidos, senão eu passaria a vida inteira apenas nesse livro.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não é difícil começar. Para mim, o mais difícil é despender a energia psíquica necessária para avançar com o livro. No caso do meu romance, o personagem principal se move em direção à dor, à descoberta, mas ele também se esconde. É um romance pesado, implacável com os personagens. São dois narradores-personagem e um deles tem reflexões muito amargas sobre a vida, então, às vezes, eu preciso respirar para dar conta de emoções que, não necessariamente, são minhas. Sobre a pesquisa, eu a faço paralelamente à escrita. Ela é mais estruturada do que a escrita, inclusive. Na escrita não tem meta diária, mas dedico duas horas diárias – quando não estou assoberbada com meus trabalhos como freelancer – à pesquisa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Com as travas eu lido naturalmente. Continuo pesquisando, vejo filmes que têm a ver com a temática do livro, ouço músicas que remetam ao universo que estou criando e espero destravar. Também acho a procrastinação importante por causa do que falei anteriormente. Às vezes, o que parece procrastinação é apenas a sua mente trabalhando, em outras camadas, aquilo que você precisa integrar e internalizar para que vire verbo. Tenho medo de não corresponder às minhas próprias expectativas – que são muito altas, mas, ao mesmo tempo, estou feliz com os resultados que venho obtendo. Quando esse medo fala mais alto, lembro que escrita é processo, e que a gente sempre escreve o que pode pra escrever melhor no próximo romance. Se você pega Claraboia, o primeiro livro de Saramago, por exemplo, não chega perto em estilo do que ele faria depois. Se Saramago tivesse deixado a autocrítica matar Claraboia, a ponto de não publicá-lo, talvez tivéssemos perdido um grande nome da Literatura. A respeito da ansiedade, tenho sim, mas também encontrei uma estratégia para lidar. Antes, morria de ansiedade ao pensar em todo o enredo, no que falta para fazer, no arco dos personagens, nas questões subjacentes que quero abordar. Para dar um olé nessa ansiedade, procuro pensar apenas no próximo capítulo. Sei o que acontecerá no livro inteiro, mas me concentro nas próximas cinco páginas. De cinco em cinco, uma hora o livro acaba.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus textos continuamente. Volto aos capítulos anteriores o tempo inteiro e sinto que eles ganham mais peso e unidade por eu fazer isso. Mostro o trabalho para colegas escritores, inclusive faço parte de um grupo que se reúne às quintas-feiras, em São Paulo, chamado Escritores de Quinta, formado pela Liliane Prata, Graziela Brum, Gael Rodrigues, Mauro Paz, Marcos Vinícius Almeida, Camilo Gomide, Natália Zuccala, Sabina Anzatue e Aline Zouvi. Lemos contos de escritores que temos como referência e também nossas próprias produções. Também tenho um relacionamento muito próximo dos leitores, que me acompanham no Instagram. Posto trechos do próximo romance na timeline e no stories (e falo sobre Literatura e criação lá também). Já teve leitor que me sugeriu alteração em parágrafo e eu fiz. Sou muito aberta a opiniões, apesar de ter consciência de que apenas eu sei o que quero construir. A troca para mim é muito importante.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
No computador, sempre. Não sei nem pensar sem um computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As minhas ideias vêm de pesquisas que faço em várias áreas do conhecimento. Estudo psicanálise, história, antropologia, filosofia e artes plásticas. Pra mim, pelo menos, é importante não ler apenas Literatura. Para dar um exemplo, faz alguns meses, eu estava estudando a obra de Van Gogh e me deparei com um quadro em que ele tinha chapado todos os elementos, deixando tudo num plano só, sem profundidade. Transpus o conceito para construir uma das cenas do meu próximo romance, deixando todos os elementos da narrativa com o mesmo peso, sem colocar naturalmente o personagem principal no primeiro plano. Outras atividades mais prosaicas também me ajudam muito: gosto de dançar e de treinar, por exemplo. Parece que não tem nada a ver, mas acessar o corpo é acessar também marcas psíquicas que temos (já dizia Reich). Ah, e medito também. Acho que trabalhar o corpo, a mente e o espírito ajuda na criação.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou o grau de maturidade e de conhecimento. Quando escrevi meu primeiro livro, do qual nem gosto hoje, escrevi de forma muito intuitiva, focada no enredo, não pensava na construção cuidadosa das frases, nada disso. Ele tem força no enredo, mas o estilo é uma tristeza. Também não tinha virado editora de livros, o que fez toda a diferença no processo de amadurecimento da minha voz literária. Se eu me encontrasse há seis anos, quando escrevi o Mate-me quando quiser, eu diria: “Vá em frente, mulher. Parabéns, você está fazendo o seu melhor. No futuro, inclusive, você vai começar a gostar mais do que escreve”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou concentrada no romance que escrevo agora. Só pensarei em outro projeto quando terminá-lo. O livro que eu gostaria de ler é meu próximo, No fundo do oceano, os animais invisíveis. Acho que sempre vou escrever aquilo que gostaria de ler, aquilo que está afinado com a minha alma e que apenas eu poderia colocar no mundo por ser fruto da minha subjetividade. A gente nasce uma vez, mas, como escritor, escolhe nascer (e morrer) muitas vezes em cada livro que escreve. Tem um pedaço da minha alma no meu próximo romance. Morro e nasço com ele em cada linha. Espero nascer e morrer ainda muitas vezes nos livros escreverei.