Anita Deak é escritora e editora de livros, autora de “Mate-me quando quiser” (2014) e “No fundo do oceano, os animais invisíveis” (no prelo).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Durmo tarde, por volta das três da manhã, então acordo mais tarde. Minha rotina matinal é dar bom dia aos meus gatos, ler alguma coisa, ouvir música, almoçar e, só depois do almoço, correr atrás da vida.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
À noite, quase sempre. Por volta das 22h. Meu ritual é reler os três últimos capítulos que escrevi para afinar a voz do narrador e seguir.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo em períodos concentrados e não tenho meta de escrita diária. A vida já exige que a gente monte uma linha de produção para quase tudo. Quando vou para a Literatura, esqueço toda essa lógica fordista e deixo que o livro aconteça no tempo que tem de acontecer. Inclusive, para mim, o ócio é fundamental para a criação. Sinto que o livro está sendo trabalhado também nos momentos em que não escrevo. Ele começa a ser escrito antes que as palavras apareçam na tela do computador, pois há pensamentos que só assentam ou se desenvolvem se dou tempo para que certas conexões aconteçam na minha cabeça.
Tem umas coisas curiosas que ocorrem também. Comprei uma gaiola de pássaro para usar como objeto decorativo em 2017. Ela sempre ficou pendurada na parede, vazia. Depois de um tempo, me acostumei a ela como objeto decorativo e não prestava mais atenção. Um ano depois, escrevendo uma cena de No fundo do oceano, os animais invisíveis, essa gaiola pousa no texto. Acabei de escrever e chorei porque nunca tinha parado pra pensar na representação do objeto que eu tinha comprado ou porquê o tinha comprado. Gosto muito de psicanálise (sou autodidata), então acredito que parte da criação surge do inconsciente. A gaiola era o meu inconsciente falando comigo. A cena do livro estava escrita na minha parede antes mesmo que eu soubesse que ia escrevê-la. Por isso, crio de forma despreocupada com o tempo, respeitando o trajeto de maturação das coisas. A gaiola precisou de um ano para se transformar num parágrafo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não é difícil começar. Difícil, para mim, é escolher o registro com o qual vai trabalhar o narrador e entender minimamente a conceituação da obra. Quando eu tenho o tom do texto, o léxico, os tipos de estruturas sintáticas com os quais vou trabalhar e o que essa forma diz do livro em si, ele flui. Claro que vou descobrindo isso no meio do caminho também, mas eu penso muito antes de escrever. E, por existirem tantas possibilidades, às vezes é difícil escolher. Sobre a pesquisa, depende do livro. No fundo do oceano, os animais invisíveis, que será lançado este ano, exigiu muita pesquisa, ao menos duas ou três horas diárias. No caso dele, a pesquisa, sim, tinha meta diária, mas não a escrita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Com as travas eu lido naturalmente. Continuo pesquisando, lendo, ouço músicas que remetam ao universo que estou criando e espero destravar. Também acho a procrastinação importante por causa do que falei anteriormente. Às vezes, o que parece procrastinação é apenas a sua mente trabalhando, em outras camadas, aquilo que você precisa integrar e internalizar para que vire palavra. Sobre expectativas, isso mudou um pouco depois que terminei No fundo do oceano, os animais invisíveis.
Antes dele, eu tinha medo de não corresponder às minhas autoexigências como autora. Agora não mais. Sei que tenho capacidade para cumprir o que me proponho. E, mesmo que não cumpra em algum livro, tenho para mim que escrita é processo e que a gente sempre escreve o que pode pra escrever melhor no próximo romance. Se você pega Claraboia, o primeiro livro de Saramago, por exemplo, não chega perto em estilo do que ele faria depois. Se Saramago tivesse deixado a autocrítica matar Claraboia, a ponto de não publicá-lo, talvez tivéssemos perdido um grande nome da Literatura.
A respeito da ansiedade, tenho sim, mas também encontrei uma estratégia para lidar. Antes, morria de ansiedade ao pensar em todo enredo, no que falta para fazer, no arco dos personagens, nas questões subjacentes que quero abordar. Para dar um olé nessa ansiedade, procuro pensar apenas no próximo capítulo. Sei o que acontecerá no livro inteiro, e planejo muita coisa, mas quando sento para escrever me concentro nas próximas cinco páginas. De cinco em cinco, o livro uma hora acaba.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus textos continuamente. Volto aos capítulos anteriores o tempo inteiro e sinto que eles ganham mais unidade e densidade por eu fazer isso. Também tenho um relacionamento muito próximo dos leitores, que me acompanham no Instagram (anitadeak0) e com quem falo de Literatura e processo criativo (alguns desses seguidores são leitores-beta). Sou muito aberta a opiniões, apesar de ter consciência de que apenas eu sei o que quero construir. Também mostro o texto para amigos escritores. A troca, para mim, é muito importante.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
No computador, sempre. A única coisa que escrevo à mão é meu diário de escrita, onde guardo reflexões sobre questões técnicas do livro e outras inspirações relacionadas a ele. Mas o texto mesmo, no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As minhas ideias vêm de pesquisas que faço em várias áreas do conhecimento. Estudo psicanálise, história, filosofia, artes plásticas… Acho importante não ler apenas Literatura. Para dar um exemplo, faz alguns meses, eu estava estudando a obra de Van Gogh e me deparei com um quadro em que ele tinha chapado todos os elementos, deixando tudo num plano só, sem profundidade. Transpus o conceito numa das cenas do No Fundo do oceano, os animais invisíveis, alterando a hierarquia entre os elementos, sem colocar naturalmente o personagem principal no primeiro plano.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou o grau de maturidade e de conhecimento. Quando escrevi meu primeiro livro, escrevi de forma muito intuitiva, focada no enredo. Não pensava na construção cuidadosa das frases, nada disso. Ele tem força no enredo, mas o estilo é comum. Também não tinha virado editora de livros, o que fez toda a diferença no processo de amadurecimento da minha voz literária. Se eu me encontrasse há seis anos, quando escrevi o Mate-me quando quiser, eu diria: “Vá em frente, mulher. Parabéns, você está fazendo o seu melhor. No futuro, inclusive, você vai começar a gostar muito do que escreve”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O livro que eu gostaria de ler é o que acabei de terminar, No fundo do oceano, os animais invisíveis. Este ano tenho dois projetos novos que já comecei, o podcast Litterae, que apresentarei junto com o escritor Paulo Salvetti, e meu curso online de escrita que estará no ar no segundo semestre.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Tudo é impossível. Eu me concentro em entender o narrador e o registro. Alinhavo isso ao enredo e faço um esqueleto-base. Acontece que conforme a escrita se desenvolve, isso sofre algumas alterações. Há capítulos também que simplesmente fluem, sem terem sido planejados. Mas acho que eles fluem por que estudei muito antes (não acredito apenas em inspiração pura e simples). Quanto à dificuldade, acho que a primeira é mais difícil que a última porque a primeira tem à frente as páginas em branco enquanto a última tem a torcida de todas as palavras que vieram anteriormente.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Eu escrevo um livro de cada vez, mas como sou editora estou sempre trabalhando em textos de outros autores. Então, a minha semana é escrever, estudar e fazer edições, leituras críticas e preparações de texto.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Escrever grandes livros. É o que me motiva. Eu acho muito emocionante quando me deparo com um autor singular e denso. Sobre o momento em que decidi ser escritora, me lembro sim. Eu era jornalista antes de entrar no mercado editorial, e o jornalismo entrou em crise. Então eu pensei: vou tirar um sabático e escrever um livro. Daí eu virei escritora e fui inclusive trabalhar no mercado editorial porque não consegui mais me afastar do texto de ficção. Resolvi que eu ia ganhar dinheiro editando o texto alheio de forma que o meu ganha pão também me ajudasse a evoluir como escritora (o quanto se aprende editando é uma loucura).
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Tem de estudar muito, insistir e subverter. Na minha opinião, é isso que leva ao estilo próprio. Então não se trata tanto de dificuldade, mas do que precisa ser feito. Passar horas e horas estudando tem um preço, então, se há muita dificuldade, talvez ainda não exista no escritor amadurecimento interno para sustentar o esforço necessário (essa sustentação pode e deve ser construída). Então a sensação de dificuldade fica mais evidente do que as tantas outras coisas boas que acontecem durante o processo de escrever. Quando penso em escrita a palavra que me vem à mente não é dificuldade: é desafio.
A respeito das referências, gosto muito de Maria Gabriela Llansol e de Almeida Faria. Não acho que meu último livro seja parecido com os deles em estilo, mas eles me influenciam porque se arriscam bastante na utilização dos recursos narrativos. Eles fazem questão de tirar o texto do lugar-comum.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Grande Sertão: Veredas, João Guimarães Rosa – Registro singular, desenvolvimento de personagem impecável e profundidade na abordagem das questões humanas.
Óserdespanto, Vicente Franz Cecim – Um texto muito delicado e subversivo, que expõe a própria construção do livro. Cheio de subleituras.
Maria Gabriela Llansol – Ela tem três diários de escrita magníficos. É possível comprá-los apenas na Estante Virtual (estão fora de catálogo). Discorrem sobre o processo criativo numa linguagem e numa conceituação do próprio trabalho que é de cair o queixo.