Andriolli Costa é jornalista, doutor em Comunicação e Informação e “saciólogo” sul-mato-grossense, e editor do site “O Colecionador de Sacis”, onde apresenta o podcast Poranduba.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho rotina, mas como estou envolvido em mil projetos ao mesmo tempo, a primeira coisa que faço quando acordo é abrir o e-mail para ver se alguém está me cobrando de alguma coisa. Não é com orgulho que admito que a ansiedade muitas vezes é grande, mas aprendi a lidar com ela. Se eu não estiver apagando um incêndio por dia, a procrastinação toma conta.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu prefiro escrever nas madrugadas ou de manhã, quando a casa está em silêncio. Gatos dormindo, namorada sonhando? É a melhor hora para escrever. O mais difícil para mim é sair da página em branco; a primeira linha será a guia de toda a narrativa, então o que mais me desgasta é achar esse tom. Meu ritual é o mesmo que com certeza muita gente já respondeu: tomar banho, deixar as ideias fluírem com a água. Quando alguma se torna latente, assim que saio já anoto num quadro branco que fica em frente à minha cama para que possa maturar. Pode ser uma palavra, uma ação, um personagem, uma frase que vai abrir o texto… Tudo é válido nessa hora.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, mas trabalho nos projetos de maneira concentrada. Eu tinha uma amiga que dizia que sua cabeça funcionava como o Windows Vista: travava sempre que mais do que três janelas eram abertas. Comigo é assim também. Não consigo sequer pensar em um projeto criativo ao mesmo tempo que o outro. Então quando estou escrevendo um roteiro, passo dois ou três dias só nisso. Preciso me desligar completamente para virar a chave para começar a pensar em um conto, por exemplo. Conforme um prazo se aproxima, um projeto vai tomando a frente e assim há sempre demanda para ser atendida.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu sou fundamentalmente um pesquisador, então as coisas se misturam. As vezes estou lendo para um artigo e uma descoberta, um jogo de palavras, uma revelação se torna inspiração para uma história. Difícil é retomar depois a concentração depois disso, pois a empolgação toma conta. Por isso deixo sempre na minha área de trabalho um aplicativo de bloco de anotações no qual eu vou colocando as ideias brutas. Com alguma periodicidade retorno a ele para ver o que realmente é uma proposta fértil para desenvolver. A movimentação entre pesquisa e escrita nunca para; uma coisa vai alimentando a outra. Tudo vai depender da complexidade do texto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu gravei recentemente um podcast falando sobre isso no meu Poranduba. O episódio se chama “O Impostor e o Trickster”. É uma reflexão que fui construindo aos poucos, a partir desta minha relação de pesquisa e vivência entre mitos em interface com a necessidade de produção intelectual e artística.
Ocorre que a experiência do Impostor, que se alimenta de nossa insegurança, ansiedade e medo de não corresponder às expectativas, sempre foi uma constante na minha vida. Eu nunca me sentia bom o suficiente, e mesmo o sucesso parecia ter sido conquistado por um acaso que nada tinha a ver com minhas capacidades. Como se eu tivesse enganado aquelas pessoas que acreditavam no meu trabalho.
No podcast, basicamente eu proponho um exercício inspirado em um pensamento calcado nas reflexões do modernismo brasileiro. Oswald e Mário de Andrade buscavam inverter a lógica da razão eurocêntrica: a preguiça não era um pecado, era uma dádiva; o valor não estava na cabeça inquieta do Pensador de Rodin, mas no enorme pé plantado no chão do Abaporu de Tarsila. Não é meu próprio saber que importa, só me interessa o que não é meu. Nada de cálculos ou fórmulas, a alegria era a prova dos nove.
Nessa lógica de inversão, sugiro repensar o próprio lugar desse sentimento de impostor. Seria realmente algo ruim? Ou melhor, não seria algo justamente peculiar ao jogo? Estamos todos enganando uns aos outros, fingindo seguranças e conquistas; a diferença é que existem alguns de nós que sofrem mais com isso. Não sejamos impostores, sejamos como o trickster enganador. Sejamos como o saci, o Pedro Malazartes, ou qualquer figura mitológica que incorpore esse arquétipo, para assim abraçar a enganação. Se conseguimos, é porque deu certo.
Fiquei muito feliz ao receber o feedback dos ouvintes. Muita gente disse que essa quebra de pensamento ajudou a destravar, agradeceu por trazer o tema, indicou o programa para os amigos que passam pela mesma coisa. Quanto mais falarmos sobre nossas inseguranças e fragilidades, menos elas serão capazes de nos dominar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso os textos o tempo todo, e sempre que os pego novamente tenho vontade de mudar uma palavra ou outra. O que vai definir o momento de parar é o meu ponto de saturação; quando outra história já está pedindo para ser contada é hora de abandonar a anterior e não tornar a mexer nela.
Quando a segunda pergunta, eu admito que não sou um bom exemplo para os escritores. Reconheço que o ideal seria sim desenvolver sua rede de leitores beta e companheiros de escrita que são capazes de fornecer feedbacks honestos que lhe ajudem no desenvolvimento do projeto. Entretanto, eu tenho um complicador que é quase um trauma: a vivência universitária.
Em um balanço da vida acadêmica agora que terminei o doutorado, identifico que minha saúde mental se consolidou de uma maneira muito melhor depois que entendi minha solidão de pesquisa. Trabalhando com o que trabalho, sempre me localizei num entre-lugar: eu pesquiso jornalismo a partir de uma teoria antropológica (o Imaginário), eu falo de folclore a partir de uma perspectiva midiática. E estando nesse espaço de intersecção, nenhuma orientação ou grupo de pesquisa era capaz de responder ao que eu procurava. Se eu não tivesse aprendido a ter confiança no que eu mesmo escrevia, pensava e argumentava, teria sido incapaz de seguir adiante.
No quesito de avaliação, percebi logo que minha aprovação ou não em publicações ou eventos da área não dependia necessariamente do que eu escrevia, mas da disponibilidade do avaliador em se movimentar na direção da heurística que eu me propunha a construir. Tudo o que eu podia fazer era dar o melhor que eu tinha a oferecer, mas isso não significaria nada se aquele que me lia não estivesse disposto a apreender o que era lido.
Acabei trazendo esse vício para a literatura. Se quero participar de uma seleção para antologia, prefiro que os avaliadores me leiam de uma vez ao invés de passar por uma “pré-banca” entre colegas. Assim, quando a avaliação for feita, já vem acompanhada do resultado. E em casos de publicação independente, o crivo é todo meu. Assumir essa responsabilidade foi um jeito de lidar com a ansiedade.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu já tentei trabalhar mais à mão. Comprei cadernos de couro, nanquim, mi blocos de nota… Tudo dinheiro jogado fora. Eu preciso ter as coisas a mão, em qualquer lugar, de um jeito que eu não perca, não bagunce ou misture as notas. A melhor coisa para mim foi começar a escrever em arquivos do Google Docs. Assim eu posso reler no celular enquanto ando de trem, escrever no computador sem medo de perder tudo com um problema no HD e assim os projetos sempre seguem andando. Para trabalhos manuais, só os biscuits de saci que faço para relaxar. Na hora de escrever, prefiro a facilidade da tecnologia mesmo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Viver a história, se deixar carregar por ela. Meus processos criativos são pequenas obsessões, nas quais eu estou pensando nela enquanto caminho, almoço, ando no transporte coletivo. Ficar deitado olhando para o nada ou para a folha de papel em branco é a morte. Deixar a vida acontecer, mas não perder de vista sua história ajuda a encontrar combinações únicas que vão torná-la muito mais rica.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Literatura não é uma tese, você não precisa fazer o estado da arte do que se falou sobre o assunto para começar a escrever. Preparação é importante, não me entendam mal, mas ela é apenas a fase inicial. Se não há esforço em buscar a conclusão, de nada adiantará todo o esforço empenhado.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de escrever um livro que as pessoas pudessem reconhecer o valor não pelo tema – o folclore brasileiro – ou pelo meu esforço em trabalhar com o gênero da ficção folclórica, mas sim pelo valor narrativo. Sem condescendências. Não é fácil, eu sei, mas é o meu grande objetivo.
O livro que eu gostaria de ler é um que mergulhasse no folclore brasileiro em suas raízes mais profundas. Não falo apenas de mitos e lendas, mas de sotaques, pratos típicos, medicina popular, cantigas de roda… Uma fantasia de sucesso que tenha cores brasileiras, a nossa sonoridade, a nossa paisagem. Estamos caminhando para isso, em breve ela virá. Sigamos procurando!