Andrio Santos é jornalista e demonologista, autor de O Réquiem do Pássaro da Morte (2017) e roteirista de Metalmancer.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A primeira coisa que faço quando saio da cama de manhã é café. Meu dia não começa de verdade se eu não tomar uma xícara de café. Às vezes, eu leio alguma coisa antes de trabalhar, uma passagem de um romance que eu goste ou alguns poemas. Isso não muda se vou me dedicar à escrita ficcional ou à acadêmica. Aliás, uma das coisas que mais me ajudou durante o mestrado e o doutorado foi à frequência de leitura de ficção. Claro, minhas duas especializações são em estudos literários, então tenho o benefício de poder ler constantemente, uma vez que esta atividade é também parte do meu trabalho enquanto pesquisador – no mestrado, eu estudei a figura do diabo nos livros iluminados de William Blake e, no doutorado, a ficção gótica de Anne Rice. Na mesma medida, as coisas que eu estudo agem sobre o que eu produzo ficcionalmente. O Réquiem do Pássaro da Morte, que publiquei ano passado via financiamento coletivo (2017), é um exemplo disso; O Réquiem é um romance gótico sobre um poeta maldito.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu sou uma criatura noturna. Adoro adentrar a madrugada escrevendo. No entanto, eu também rendo muito quando trabalho de manhã. Existe alguma coisa em mim que me faz render acadêmica e ficcionalmente nestes dois momentos opostos; o apolíneo e o dionisíaco em mim, provavelmente. A tarde costuma ser um momento nulo no meu dia e eu o ocupo com outras atividades – gosto, por exemplo, de sair por aí, eu e a Jéssica Lang, minha namorada, que é ilustradora, num flâneur pela cidade, fotografando as coisas que ninguém mais vê. Inclusive, momentos como esse são fundamentais para que eu me mantenha afiado para a escrita, principalmente porque, enquanto caminhamos, dividimos dúvidas, questões, angústias ficcionais e estéticas.
No caso da escrita ficcional, meu processo tende a ser um pouco sinestésico, relativo ao que estou escrevendo no momento. Durante o processo de escrita do Réquiem, eu ascendia incensos, escrevia durante as horas mortas da madrugada, bebendo vinho e ouvindo dark wave. Quando escrevi os contos de horror Sinfonia Carmesim, que saiu na coletânea Sussurros da Boca do Monte (AVEC, 2017), e O Peregrino da Loucura, que saiu na Herdeiros de Dagon (Argonautas, 2015), o processo foi um pouco insone. Eu visitei algumas locações, li jornais antigos em acervos, fotografei casas velhas e abandonadas e acabei escrevendo boa parte dos textos durante essas caminhadas, sentado em algum banco de praça, em blocos de notas. Eu preciso sentir o que o texto quer de mim e oferecer isso a ele, só assim eu consigo escrever.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu não tenho metas, já tentei usá-las, mas não funcionou para mim. No que concerne à pesquisa e escrita acadêmicas, eu normalmente dedico a maior parte do meu dia de trabalho a isso. Em momentos de escrita acadêmica intensa, acabo negligenciando a ficcional e, justamente por isso, quando produzo ficção, acabo embarcando freneticamente nela; então escrevo por dois ou três dias seguidos sem parar. De fato, gosto de escrever por longos períodos, até cansar do texto. Então tiro uns dias para pensar no que escrevi e reexaminar a narrativa.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
No caso da escrita acadêmica, eu leio muito sobre os temas que se relacionam à pesquisa. Por vezes, acabo circulando em temas e questões tangentes, porque gosto de ter uma boa noção do todo, de cobrir o maior número de pontos possíveis sobre as questões da pesquisa. Só depois que absorvi muito de teoria e crítica sobre o assunto eu me sento de fato para escrever. Então organizo minhas notas, citações e referências e me dedico inteiramente a isso, adentrando em períodos intensos de produção.
No caso da ficcional, a coisa tende a ser mais fluida. Eu uso cadernos e blocos para fazer notas, rascunhos e afins. Também gosto de fazer painéis com algumas notas sobre a história. Mas, como mencionei, depende de que tipo de história eu estou escrevendo no momento.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não tenho certeza se lido de fato com essas questões. Normalmente, quando alguma coisa me atrapalha, qualquer sentimento que seja, me impedindo de trabalhar ou de render durante o trabalho, eu simplesmente desisto. Então faço outra coisa, qualquer outra coisa. Saio com amigos, vou caminhar, assistir alguma coisa, ler alguma coisa, jogar vídeo game. No geral, faço algo que me afaste o máximo possível da tarefa que eu não estou conseguindo realizar. Já cheguei a ficar mais de uma semana sem conseguir trabalhar na minha tese, durante o doutorado. Mas depois voltei ao normal. No fundo, acho que essas interferências são fruto de intenso stress ou de nossas angústias auto-infligidas. Não é fácil, de fato, lidar com isso, mas eu encontrei uma forma que mais ou menos funciona. Precisamos saber a hora de deixar para lá, de relaxar e fazer outra coisa, alguma coisa que realmente queiramos fazer naquele momento. Então as coisas tentem a melhorar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso duas vezes. Porque depois da segunda vez, minha leitura fica viciada. Isso é curioso, eu sou um revisor atento, mas quando reviso meus próprios textos tendo a deixar coisas passar. Depois que eu finalizo um texto, envio para a Jéssica Lang, que me dá um feedback estético e narrativo. Então eu reescrevo o texto e o envio para alguns revisores ou revisoras – no geral, duas ou três pessoas. Quando o texto volta para mim, eu reescrevo o que achar necessário, considerando as observações. Claro que esse processo varia, mas é mais ou menos assim que eu finalizo meus textos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu gosto de manter cadernos para notas, rascunhos e afins. Também aprecio construir painéis na parede com menções a personagens, notas, recortes, citações e etc. Isso eu faço tanto para escrita acadêmica quanto para ficcional. Mas utilizo esse tipo de recurso especificamente para uma espécie de fase anterior à escrita. Quando de fato me proponho a trabalhar, escrevo no computador, pela simples razão de que é mais prático. Além disso, gosto de ter certos recursos à mão. Uso muito o Pinterest para procurar referências para lugares e personagens.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
No caso da pesquisa acadêmica, leva tempo. Pouco a pouco, conforme leio, pesquiso e escrevo, vou associando coisas, traçando paralelos, encontrando lacunas e intersecções interessantes. Então acho que minhas ideias se comunicam com esse pano de fundo. No caso da escrita ficcional, eu não sei dizer se minhas ideias são boas de fato. Até porque eu não sei se acredito em ideias inovadoras e coisas do tipo. O que eu acredito é que a forma como eu trato uma ideia pode se tornar interessante. O fator principal não é necessariamente a história, mas como nós a contamos. Para manter o ritmo, eu leio o máximo possível, porque só conhecendo um sem conta de histórias é que podemos contar as nossas próprias. A poesia me ajuda muito, eu adoro poesia. Tenho uma predisposição pelos malditos, como Byron e Baudelaire, embora goste de quase tudo feito até o início do século XX. Música também é fundamental, não consigo escrever sem música. Na verdade, acho que não poderia viver sem música. Tenho um gosto amplo, vou do pop ao metal sem problemas, mas sou criterioso com essas coisas. Não consigo ouvir um artista ou banda só por ouvir, eu gosto de quem tem alguma coisa a dizer.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu sou menos preciosista hoje do que era há oito
anos, quanto comecei a tentar escrever ficção. Eu amava demais meus
personagens, enredos e temas; hoje, eu corto passagens e capítulos sem muita
piedade. Também fiquei mais crítico, com mais repertório ficcional, sem dúvida
algo potencializado pelo mestrado e pelo doutorado, o que me ajuda a considerar
o que eu escrevo de forma mais afastada, mais coerente e mais crítica. No que
tange a escrita acadêmica, aprendi a produzir de forma metódica, observando bons
textos e replicando a estrutura. Hoje já solto um pouco mais a mão e faço
inserções, escrevendo de forma menos linear quando o assunto pede. Foi o caso
de um ensaio que fiz sobre William Blake e Allen Ginsberg, um dos mais difíceis
que já escrevi e o qual, confesso, me deixou contente com o resultado.
O que eu diria a mim mesmo? Eu me aconselharia a ler mais e mais, a sair mais e
ver mais gente e a fazer mais coisas; acumular mais experiências. Porque o
limite entre o mundo dos livros e o mundo fora dos livros costuma ser muito
tênue.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Ficcionalmente, eu escrevo no meu tempo. Meus projetos tendem a estar dentro do que eu quero fazer no momento. No entanto, ainda gostaria de me aventurar a compor poesia. Eu tenho vários poemas guardados, mas acho que em muito pouco deles há poesia; aliás, há muito pouca poesia na ficção hoje, seja em verso ou em prosa. Academicamente, ainda quero desenvolver algum projeto relativo a textos góticos específicos.
Honestamente, não ser dizer que tipo de livro eu gostaria de ler que não existe. Até porque provavelmente eles existam, quero dizer, os livros que eu gostaria de ler. Talvez eu só não os tenha encontrado ainda, mas eles devem existir. Ainda assim, gostaria de mais livros com temáticas subversivas; esse tipo de narrativa é essencial para que nos questionemos enquanto indivíduos e sociedade e possamos nos conhecer melhor e nos desenvolver melhor em âmbito humano.