Andressa Barichello é escritora, autora de Crônicas do Cotidiano e outras mais (2014).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho uma agenda flexível, por isso os dias por vezes começam cada um de um modo diferente. Tento iniciá-los com um repasse mental sobre as atividades. Com sorte ainda conseguirei organizar uma rotina, acho que ter uma mais bem estabelecida faz falta; não porque acredite que assim o dia vá “render mais”, simplesmente tenho a impressão de que física e mentalmente faz bem certo ritual diário, e ter uma rotina é cumprir, de alguma forma, uma repetição que atrapalha algumas possibilidades, mas consolida outras. Liberdade para gerir o próprio tempo pode ser uma armadilha.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto muito de escrever a partir das dez da noite. Se puder escolher, prefiro avançar pela madrugada e acordar um pouco mais tarde que deitar mais cedo e escrever pela manhã ou à tarde. O final da tarde também costuma ser um bom momento, mas aí desde que seja acompanhado de um café, uma fatia de bolo, uma cena toda… É muito raro escrever pela manhã, isso só é possível se eu acordar com algum sonho ainda fresco que peça para ser registrado e a partir do qual surja o impulso de iniciar uma história. Escrever para mim tem a ver com esses gatilhos. Preciso ver uma cena que pode ser banal, mas que faz faísca, ou rememorar algum episódio, intuir qualquer coisa sobre uma ideia ou acontecimento. Escrevo aquilo a que sou remetida, pelos mais diversos estímulos. Mas não pode haver excesso de estímulo. A preferência pela noite também se relaciona ao silêncio e à possibilidade de estar sozinha. Não me refiro só ao momento em que posso estar sem companhia, pois as notificações das redes sociais costumam nos tirar atenção mais que a presença de alguém. Quando escrevo à noite não preciso de muita mise-en-scène. Gosto de ouvir MPB com fones de ouvido, eles me ajudam a “interiorizar” e parece que a música contribui na tarefa de encontrar um ritmo. Quando uma música parece se encaixar com o que escrevo já percebi que começo a repeti-la intuitivamente até acabar o texto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Gostaria de escrever todos os dias, pois a escrita para mim tem um papel catalisador de emoções, afetos, ideias. Mas para escrever preciso estar sensível às palavras, às cenas, como se por um momento “virasse a chavinha” e me tornasse uma observadora da vida em câmera lenta. Quando consigo estar sensível para enxergar uma possível segunda camada no cotidiano, ou nas minhas memórias, procuro pelo teclado. Se estou bem, escrevo. E se estou mal escrevo também. Quando algo me angustia é também um bom estímulo, mas esse tipo de estímulo nem sempre consigo aproveitar. A ideia de pensar em criar uma meta de escrita diária só é possível quando uma história surge “quase pronta” e não é possível escrevê-la de uma só vez. Então dá para, por um curto período, brincar com uma meta. É muito raro eu ter uma ideia de texto com inicio, meio e fim. Geralmente só tenho o início e é durante a escrita que consigo desdobrar. Por isso há textos que ficam pela metade, talvez à espera de que algo, um dia, possa vir para completá-los. De toda forma, se eu pudesse pelo menos me propor tentar escrever algo todos os dias seria um exercício importante. Propor-se à tarefa, mesmo que para fracassar. Acho que boas surpresas podem surgir quando pensamos não ter nada a dizer. Porque às vezes essa aparente secura esconde temas difíceis que não aparecerão tão facilmente aflorados nos bem-estares e mal-estares que despertem a consciência de que há o que produzir. Esse tipo de disposição para escarafunchar e não encontrar nada pode ser surpreendente.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acredito que me movo da escrita para a pesquisa. É como se para chegar a compreender sobre qual tema eu desejo escrever eu precise, antes, escrever de forma a circundar melhor o meu objeto. Tenho a impressão de que a pesquisa é algo que vem em socorro, para alimentar a chama do que já foi escrito e auxiliar no surgimento de novas associações, dar estofo. Isso pode até resultar no descarte do texto inicial, mas ele é necessário para sinalizar um caminho.
Também entendo como pesquisa o simples gesto de andar pelas ruas, ouvir as pessoas, ler livros. Nesse sentido, o movimento da pesquisa para a escrita seria mediado por um intervalo curto, entre o viver/experienciar, o anotar e o criar um texto. Quando penso nesse processo me ocorre a imagem de carregar areia com os braços de um monte ao outro; abraçar a areia, levantá-la e perder um bom tanto do peso e da matéria com esse gesto, mas ao mesmo tempo iniciar a formação de um terceiro monte com aquilo que se conseguiu transportar, e depois poder misturá-lo para que se transforme numa massa mais sólida que ajude alguma coisa nova a parar em pé.
Quando tenho uma boa compilação de notas é fácil começar, às vezes até escrever muitas linhas no calor de uma ideia. O mais difícil, então, será olhar para o texto e entender se as palavras são mesmo aquelas e o que pode ser cortado.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Tento respeitar o espaço meio imponderável entre querer escrever e conseguir. Quando não dá, não dá e tudo bem. Reclamo muito, é claro, mas aceito. Tenho medo de “não conseguir mais escrever”, o consolo é saber que um momento de baixa será seguido de um momento mais “inspirado”, por assim dizer. O que me prejudica é adiar a tomada de notas de coisas que vejo, de ideias que tenho para possíveis textos. Quando a cena acontece ou a ideia surge, a impressão é de que ela (cena ou ideia) é tão nítida e até óbvia e que não esquecerei, então deixo para anotar depois. Mas, como acontece com os sonhos, esses “alumbramentos” somem da memória se não forem ancorados pelo menos por algumas palavras-chave. De toda forma, as resistências em anotar e em ter a disciplina necessária parecem contribuir de algum modo para o trabalho. O que se escreve é fruto do que flui, é certo, assim como da disciplina e da inciativa, ninguém dirá o contrário… Mas a procrastinação talvez mature alguma coisa ou ao menos aponte para o fato de que há momentos de vida ou certos temas que nos lançam a esse lugar de ensaiar voo, e às vezes temos de ficar por lá mais tempo do que gostaríamos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A quantidade de revisões varia de texto pra texto. Há textos dos quais me canso antes, e esses abandono logo. São os textos nos quais tenho confiança de ter expressado o que precisava, mesmo que as palavras ou a construção possam não ter sido as mais acertadas. Crases, vírgulas erradas… Eu tenho muita dificuldade em fazer a revisão gramatical, por exemplo, porque é chato e porque me confundo muito mesmo. Tento não ser tão exigente a esse respeito, porque acredito que é o tipo de equívoco que pode ser facilmente ajustado por ocasião de uma publicação. Há outros textos nos quais me demoro muito, corto, reescrevo, substituo palavras. Embora qualquer texto a princípio pareça gerar possibilidade de infinitos “ajustes finos”; tenho a impressão de que a demasiada insistência na revisão sinaliza que talvez eu não acredite no que escrevi, que mesmo “bem acabado” como forma, algo no texto está sem verdade. Por mais que escrever derive sempre de alguma surpresa, mal-estar ou qualquer outra sensação genuína, o texto nem sempre alcança se aproximar disso. Acho que a sensação do texto pronto precisa existir primeiro nesse sentido (de que há verdade), para que depois, com ajustes aqui e acolá, possa se chegar ao texto pronto no sentido de “bem revisado”.
Os trabalhos que atualmente mostro a outras pessoas antes de publicar são as crônicas que escrevo para a Revista EMA. A Natasha Tinet Zanetti e a Nanna Azjental me ensinaram muito sobre a importância de ter alguém que nos leia e faça apontamentos. Acho que a leitura de alguém é fundamental para que o texto consiga ser o que é em sua melhor forma. De todo modo, pra isso acontecer é preciso uma relação de confiança e disponibilidade de ambas as partes. Num cenário ideal eu mostraria tudo que escrevo para alguém, mas nesse momento ainda não tenho esses pares com quem estabelecer uma troca mais constante.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo tudo no computador e sempre foi assim. A velocidade que o computador permite parece uma grande vantagem no fluir das ideias, um auxílio para que as palavras não escapem. É muito mais fácil reescrever no mesmo fluxo, o que deixa o texto mais limpo. Nunca tentei escrever à mão, mas acredito que superada a perda do hábito de usar a caneta eu talvez descobrisse que as palavras trazidas para o suporte do papel ganham uma materialidade que permite serem vistas com mais clareza dentro da composição. Encontrar uma harmonia entre o fluxo de pensamento e o ritmo do corpo para escrever cada letra, cada acento, parece trazer ganhos em relação à digitação (na qual todas as letras são iguais, basta apertar e pronto, e precisamos, só depois de tudo escrito, tentar enxergá-las e senti-las com a razão, com o corpo um tanto alheio ao processo).
As notas que tomo eu também digito, tenho um bloco de notas no celular.
As únicas notas que tomo em papel são as relativas ao projeto Fotoverbe-se, no qual escuto artistas contarem sobre sua trajetória para depois escrever um texto a partir do que “ficou” dessa experiência. Tendo um interlocutor pareceria estranho lançar mão do celular, a impressão seria a de que não estou prestando atenção ao que é dito. Já com o papel e a caneta acabo por dar a impressão de estar prestando mais atenção do que às vezes estou de fato. Isso não é curioso?
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As minhas ideias vêm do cotidiano. Por isso, preciso sair de casa, estar com as pessoas. Andar a pé, ir a um lugar e permanecer lá por um tempo observando o ambiente e quem passa por ele, usar o transporte público, ouvir conversas das quais não faço parte, ler notícias. É preciso desacelerar e estar atenta (o que, paradoxalmente, significa também estar levemente distraída). Embora seja mais difícil, isso é possível até mesmo nas atividades como dirigir ou ir ao mercado – o desafio de observar os detalhes e as pessoas será maior tendo de prestar atenção ao trânsito e à lista de compras, mas algo pode brilhar em meio ao previsível ou automático.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Sei que não há idade para começar a escrever, mas acho que demorei a acolher a escrita como forma preferencial de expressão. Assim como demorei a me tornar uma leitora assídua. A minha adolescência e o início da minha vida adulta foram períodos bastante “mortos” no sentido de poder estar próxima de atividades que, hoje, entendo como essenciais. Ao mesmo tempo, muito do que escrevo colhe referências naqueles períodos.
Quando aos poucos comecei a me apropriar das palavras para escrever textos não acadêmicos, o segundo passo foi perceber a questão estética e entender que nem todo texto é literário. Nesse processo a leitura de textos de diversos gêneros e as oficinas que tenho oportunidade de fazer são muito importantes.
Descobri que não era preciso ter vergonha de mostrar o que eu escrevia a partir da experiência de acessar o blog de um professor de sociologia que foi muito importante na minha formação, o André Filipe. Quando me dei conta de que ele não via problema em tornar público seus poemas mesmo tendo tantos alunos, foi um incentivo a que eu disponibilizasse os meus escritos. Isso foi em 2010, quando o espaço preferencial ainda era o “blogger” com uma forma diferente de interação e acesso. O que eu diria a mim mesma naquela época é o mesmo que digo agora: continue (e sem pressa!). Teria sido bom se, desde o início, eu tivesse a visão mais realista (ou pessimista?) sobre a pessoalidade das relações no meio literário e o funcionamento do mercado editorial, por exemplo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho vontade de escrever microcontos, mas por enquanto tenho sempre escolhido permanecer no binônimo conto e crônica. A capacidade de escrever microcontos tenho certeza de que ajudaria, por exemplo, na escrita de um romance, como um treino de apuramento que, no mínimo, evitaria as frases longas demais e dispensáveis. Quanto mais se puder dizer “tudo” sem dizer tudo acho que mais rico um texto se torna, e o microconto leva isso ao limite. Gostaria de me envolver mais com os outros gêneros, tornar a experiência de escrita menos “compartimentada” na minha cabeça (e no resultado do texto).
Não faço ideia de qual livro eu gostaria de ler e que ainda não exista, acredito que os livros de que mais gostamos são aqueles dos quais precisávamos e nem sabíamos que precisávamos, que nos chegam pelo acaso, pelo afeto e acabam por ser uma descoberta, uma mobilização de recursos, criando entendimentos e possibilidades que fogem à nossa quase ingênua expectativa racional.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Não consigo me imaginar escrevendo um texto que já esteja mais ou menos pronto na minha cabeça. Nunca me aconteceu de ter uma história com começo, meio e fim e apenas precisar colocá-la no papel (é interessante como a gente ainda usa a expressão “colocar no papel” mesmo quando escreve no computador, né?).
A palavra planejamento acaba por me remeter a essa competência de vislumbrar algo de modo global, embora eu saiba que ela tem um sentido mais abrangente dentro do contexto dessa pergunta.
Interpretar a palavra planejamento já é, para mim, esbarrar numa certa falta de recursos para entender isso que é do método racional, da organização. Não tenho.
O que posso dizer, então, é sobre o “deixar fluir”. A palavra fluir consegue expressar visualmente o que é, para mim, a continuidade/marcha de um texto: a derivação, o constante desfazimento, a distância por onde estender um fio.
O início do projeto é o “dedo indicador” a cutucar o fio, como quando a gente procura a ponta da fita-crepe. Ao ler a palavra crepe lembrei-me que quando eu era criança e algo não funcionava bem a minha mãe dizia: “ih, deu crepe!”. Não sei quão antiga é essa expressão para referir ao malsucedido.
A ideia do fluxo é mais ou menos por aí, essa mistura: puxar alguma extremidade visível de coisas que não sei quão recuadas estão no tempo, sem medo que a ideia dê crepe; sem medo que a ideia “decrepite”? O início é uma ponta. Ponta naquele sentido das novelas mesmo: o papel de pequena importância. Conforme vou (me) incluindo ele cresce, ela cresce.
“Colocar uma ideia no papel” se constrói um pouco no improviso, na prática, aos poucos. Sendo assim, escrever a primeira frase é via de regra mais fácil do que escrever a última. “Dar acabamento”, dizem, é a parte mais difícil da construção civil; será que o mesmo vale para o texto? A forma como um texto termina (mais do que a forma como ele começa) parece capaz de torná-lo mais ou menos apurado enquanto conjunto, por mais que eu jamais tivesse coragem de afirmar isso como verdade.
Contudo, é preciso considerar que, como acontece ao rolo de fita-crepe, às vezes não aparece a pontinha a partir de onde puxar.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Hoje meu irmão contava sobre uma fábrica de bonecas inaugurada por um conhecido nosso. Não se trata propriamente de uma fábrica de bonecas (o corpo delas vem da China e a parte eletrônica será produzida pela empresa brasileira). Quando ele me disse: a fábrica vai cuidar daquela parte do “mamãe, quero papinha”, do “mamãe, você é demais” eu senti que isso poderia vir a dar origem a um texto ficcional.
Logo digitei no Google: “frases ditas por bonecas” e “frases famosas de bonecas falantes”. A primeira coisa que encontrei foi um slogan: “brincar de ser mamãe ficou mais divertido com a boneca Milk Shayane”. Essa história de “brincar de ser mamãe” é, por exemplo, um mote que considero interessante dentro do meu universo, dentro dos temas que evocam a minha produção nesse momento. Seria possível chamar de início de projeto esse tipo de ocorrência? Acho que sim.
Gostaria de poder dar uma resposta que pudesse transmitir alguma ideia de gestão ou de trabalho formal nisso que faço (porque acho importante que a escrita seja compreendida como um trabalho, uma carreira, um compromisso). No entanto não pareceu fazer sentido dizer que consigo encontrar algum paralelo entre essa atividade e o “modus operandi” de profissões nas quais existam direções ou metas mais claras.
Não é que eu não possa trabalhar com metas em um texto/projeto; é possível estar comprometida a avançar um número X de páginas em uma quantidade X de tempo; mas isso se a coisa já estiver fluindo no plano das associações, da provocação aceita (no plano da minha realidade emocional, cognitiva).
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Desde criança sou muito inclinada à fantasia. Escrever é uma forma “socialmente aceita” (e bem aceita) de canalizar o excesso de devaneio; de encontrar âncora para o que não encontra “ponto de basta” se não for aterrado em palavras. É curioso pois pensei a palavra aterrar como o pouso (em Portugal é muito comum usar aterrar em vez de aterrissar). Contudo, aterrar também é sinônimo de aterrorizar. O que motiva minha escrita, então, talvez seja esse desejo de procurar terra firme – para que o espaço aéreo do meu pensamento (e das minhas fantasias) não se torne muito aterrador.
Logo após atravessar pela primeira vez um período de angústias comecei a escrever com frequência. Já faz uns dez anos.
Na mesma época um professor da faculdade de Direito, o André Filipe Pereira Reid dos Santos, tinha um blog onde publicava poesia e escritos sobre diversos temas, sem muitos filtros.
Eu devo ter sentindo que se o professor com um “nome a zelar” (um nome bem comprido, aliás) podia tratar sobre os temas que lhe ocorressem, eu, Andressa Barichello (um nome tão curto, aliás), não tinha muito a perder se ousasse escrever. Se eu tivesse muito a perder talvez eu não escrevesse, pelo pudor. Se eu tivesse nada a perder talvez eu não escrevesse, pela loucura. Não ter muito a perder (mas ter alguma coisa a perder) parece ter sido o entremeio que até hoje auxilia o meu fazer.
O movimento de pensar sobre o meu próprio nome (suas letras, seu tamanho, seu jeito) ajudou a que eu começasse a entender que há mais histórias do que nomes a zelar por aí; e que a escrita é um jeito de tomar conta disso que interessa.
Numa sociedade tão desigual quanto a brasileira é um privilégio imenso ter a oportunidade de acessar ferramentas/espaços que convidem para o universo gigante da linguagem, da poesia, do simbólico; ao menos enquanto fruição de literatura (a anteceder a própria escrita). Gostaria que a escrita pudesse ser um recurso acessível para mais pessoas, embora muitas pessoas com pouco acesso à literatura tenham feito muito por meio da palavra.
A escrita é, enfim, uma forma de processar emoções, de tentar uma dialética diante de um mundo por vezes tão brutal. Procurar a delicadeza, reapresentá-la diante de tudo isso de cru(el) que há: acho que é essa a minha maior motivação para escrever.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Possivelmente as maiores dificuldades sejam aquelas relacionadas a aceitar, sem grande preocupação, que algumas coisas não me servem.
Devo tentar escrever um romance se a minha inclinação maior é para a crônica? Devo tentar escrever em terceira pessoa e criar personagens mais distantes de mim se o meu fluxo é em primeira pessoa? Se eu quebrar as frases da minha prosa porque isso parece me ajudar na construção do que desejo contar parecerá que tento fazer poesia? Importa que as pessoas pensem que estou tentando escrever poesia quando na verdade só estou experimentando alguma coisa?
São muitas as travas racionais que nos impedem de experimentar e acho que esse receio na recepção de um texto é algo que embaraça tudo para mim. Suspender o julgamento (e o receio de julgamento) é algo que tento exercitar; quando tento agradar é fracasso.
Muitas autoras me influenciaram; mais as mulheres que os homens, talvez (ainda que possa estar sendo injusta). O problema é que não sei se isso é algo que a gente consiga trazer para o plano racional e apontar de um jeitinho certeiro. A impressão que tenho é a de que se eu dissesse por quais autoras fui mais influenciada eu estaria inventando uma verdade muito mais do que reconhecendo algo (embora não haja nada de reprovável nisso).
Há, entretanto, um evento que consigo vislumbrar como tendo sido muito marcante: ter lido os três volumes de Viver & Escrever com as entrevistas feitas pela Edla van Steen. Foram muitas noites a reler com muito prazer todas aquelas conversas com escritoras e escritores (embora tenham sido poucas as mulheres entrevistadas). Eu me sentia mais próximas deles, a entendê-los como pessoas comuns, talhadas pelos acasos… E a carreira literária como sendo mais percurso do que dom e as melhores oportunidades mais oriundas de algumas trapalhadas, das circunstâncias e de uma disponibilidade. Não havia nos relatos uma sequência linear de acontecimentos capazes de formar escritores.
Houve épocas em que achei que para ser escritora era imprescindível cursar Letras (!). Assim, acho que as escritas (livros, autores e autoras) que mais me influenciaram foram os que puderem me aproximar do que antes eu considerava estrangeiro (dentro ou fora de mim).
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Veludo Violento, da Natasha Tinet – é um livro com uma tensão irônica que nos lança de epifania em epifania. Há humor, crítica, dor e alegria, tudo misturado. Essa obra inclui ilustrações feitas pela própria Natasha. O Veludo Violento foi lançado em dezembro de 2018 pela Imprensa Oficial Graciliano Ramos e foi premiado com o 2° lugar no Prêmio da Fundação Biblioteca Nacional 2019.
Memória dos Ossos, da Juliana Diniz – foi um livro marcante pela forma bonita como a autora conseguiu retratar a história de mulheres de uma mesma família (mesmo diante dos temas duros que permeiam a narrativa). Gosto quando um livro consegue evocar a sensação do belo; essa é uma das coisas que procuro numa leitura. Foi publicado pela Editora Dummar em 2018.
Brilha quando foge, da Julia Zuza – é o que estou lendo nesse momento. Corpo e terra se confundem em poemas nos quais não sabemos se a memória esclarece, recria (no presente) ou nos transporta para o futuro das coisas, que vão sendo vistas em rastros (tudo que fica, apesar do que foge?). Um livro sobre a terra, sobre isso que dá uma dimensão singela e particular ao que sejam os tão falados “territórios”. Foi publicado pela Urutau em 2019.