André Martins é filósofo e psicanalista, professor da UFRJ.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho rotina matinal. Ou melhor, sim: acordo todos os dias às 6h30 para preparar o café-da-manhã de meu filho de doze anos que mora comigo, sua mochila, uniforme, lanche etc. Quando estou com meu outro filho, de seis anos, idem. Depois disso é que a rotina acaba, pois a cada dia tenho horários diferentes. Meu trabalho universitário me consome, infelizmente, sendo obstáculo para uma ainda maior dedicação à escrita, à pesquisa e à redação de artigos, livros e outros produtos de minha reflexão, que é o que mais me realiza. A própria reflexão também me realiza, mas ela é incontornável, espontânea, impõe-se a mim, não exige propriamente trabalho ou dedicação: acontece, o tempo todo, uma profusão de ideias, conclusões, compreensões, descobertas, soluções a investigações, indagações, nós conceituais… Geram notas, gravações… Mais difícil é passar essas notas e gravações para o papel, ou mesmo transformar anotações ou transcrições em produtos, textos “prontos” para publicação. Meu sonho é poder cada vez mais dedicar-me à escrita e produtos de transmissão do pensamento, não somente em aulas, palestras e conferências, e menos ainda à parte burocrática da vida acadêmica.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho propriamente ritual para a escrita, nem propriamente um melhor horário. Trabalho bem quando tenho o dia livre, ou pelo menos muitas horas pela frente, pois assim não me sinto pressionado a correr, o que seria contraproducente. É preciso deixar que as ideias se acalmem dentro de mim, que a agitação passe, que o foco se concentre cada vez mais no texto em questão, que o resto vá ficando em segundo plano, por força do foco no texto, como consequência da própria concentração no universo do texto que está sendo trabalhado. Quando consigo isso, entrar no universo mágico da dedicação às ideias, a felicidade é suprema, mesmo diante das dificuldades que encontro em algumas passagens da construção conceitual, dos nós argumentativos, da compreensão fina do ponto em questão, das implicações que vão se abrindo à medida em que avançamos na escrita. Quando não estou cansado, trabalho muito bem também à noite, quando a mente e o mundo à volta se aquieta, e a própria escuridão e relativo silêncio levam à concentração. Também trabalho bem quando a casa está cheia, mas sei que estão todos ocupados, bem, felizes; a vida resplandece, floresce, se expande; deixo a porta aberta, não me sinto bem me sentindo isolado; quero sentir o movimento, e durante aquele período não ser solicitado; sentindo-me parte, e ao mesmo tempo podendo ser eu mesmo, fazer o que mais amo, que é escrever. Nesse caso, a concentração também vai me tomando aos poucos, e a movimentação na casa não me atrapalha, ao contrário, me acalma, me faz sentir amado. Assim não me sinto sozinho ou isolado do mundo para poder ser e escrever… Quando eu não tinha filhos, também amava me isolar de verdade, nas montanhas, em alguma casa de frente para o mar, a partir de onde eu sequer avistasse alguém, para entrar no meu mundo infinito e escrever… Quando ainda consigo reproduzir esse ambiente de isolamento, não afetivo, mas físico, também produzo muito bem. Os maiores inimigos de minha produção de escrita são o corre-corre de tarefas quotidianas de trabalho e de “administração da vida”, e a solidão psicológica.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo quando dá, em períodos concentrados. Já tentei escrever todo dia, e já tentei ter uma meta diária de escrita, mas não deu certo; me vi pressionado pelas metas, o sono era terrível e eu ficava bem deprê. Acredito que será maravilhoso quando eu puder tornar os tais períodos concentrados mais frequentes e maiores.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É difícil começar. As ideias estão em profusão na mente; escrever significa para mim fazer um recorte em tudo o que se passa em minhas ideias; de modo que o início é árduo pois requer esse encaminhamento inicial. Em geral levo mais tempo para iniciar, encaminhar o texto, do que para desenvolvê-lo. Uma vez que consegui organizar o início, todo o resto flui melhor. O início é também mais difícil pois é o momento que exige maior concentração. O restante do texto é mais leve, mais fácil de fato, e aí não dá mais vontade de sair dele. Muitas vezes me ajuda ter escrito um roteiro, mas no mais das vezes as notas propriamente ditas não são vistas; anoto mais para me ajudar a organizar e clarear as ideias. Se não tomo notas, se não escrevo as ideias quando elas pululam em minha mente, as ideias ficam como que ricocheteando na caixola. (risos) Nietzsche escreveu que escrevia para “se livrar” de suas ideias. Eu não escrevo para me livrar de minhas ideias, mas para que elas não fiquem ocupando minha mente, de modo a darem lugar para novas. Caso contrário a fila das ideias não anda. Quando escrevo, além da felicidade do momento da escrita, sinto uma enorme satisfação por ter reunido naquele produto, naquele texto, aquela ideia, sua argumentação, suas implicações.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Amaria trabalhar em projetos longos… Me senti muito bem quando escrevi minhas duas teses de doutorado. Infelizmente não consegui retomar essa experiência. Embora eu deseje muito avançar em meus livros, os artigos são menos dolorosos e mais viáveis em meio ao corre-corre de ganhar a vida. Não tenho bem “travas da escrita”, mas travas “antes” da escrita, momentos de dificuldade em iniciar, por falta de tempo, por não estar me sentindo bem, por frustrações, por carência afetiva, por solidão nessa empreitada da escrita. O medo de não corresponder às expectativas surge não em relação a expectativas externas, mas a expectativas minhas mesmo, ao que eu espero de meus escritos, ao que eu sei que eles podem conseguir, ao quanto eu sei que eles podem mexer com o leitor, e que minhas ideias podem mexer com as pessoas… Sinto-me muito sozinho nisso, nessa “aposta”. Quando passei no concurso para professor universitário, pensei, como muitos pensam, que enfim eu teria o ambiente propício para produzir; mas nada mais falso; na universidade nunca encontrei apoio para escrever, apenas vaidade e competição. Enfim, coisas da vida real.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Revejo-os uma ou duas vezes, e sempre mostro a alguém ou a mais de uma pessoa antes de publicá-los. Quero ter retorno sobre se as ideias estão claras, se o texto está claro, se dá para entender, se ficaram claras também as implicações do texto etc. A leitura de alguém é fundamental, para aferir como o texto está chegando a seu objetivo, que é a leitura, que é tocar, transformar…
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo notas à mão ou diretamente no aplicativo de notas do celular; e textos sempre diretamente no computador. Não consigo mais escrever um texto definitivo à mão. Creio que a última vez que escrevi à mão um texto final foi em meu mestrado, lá se vão quase trinta anos, quando sequer existiam computadores.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Felizmente não preciso de nenhum esforço ou método para me manter criativo. Preciso, sim, acreditar na força de minhas ideias, na força da vida, na beleza trágica da vida… Ou seja, o que me mantém criativo é o mesmo que me mantém vivo. As ideias, assim, pululam numa imensa pletora, graças ao Deus de Spinoza. (risos)
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Mudou que no início eu sofria muito, eu sofria mais, pois era muito difícil canalizar as ideias para o papel, e isso era muito angustiante. Eu precisava de muito mais tempo para me concentrar e para produzir, e ficava muito insatisfeito com o resultado. Mas precisava escrever. Com o tempo fui conquistando clareza e simplicidade, e com isso mais segurança na escrita. Com o tempo também, as ideias foram ficando muito mais claras, menos intuitivas, e isso me trouxe um acréscimo grande de confiança, e sobretudo de segurança. Com o tempo, enfim, as desconfianças dos outros foram-me ficando cada vez mais indiferentes e inócuas; pararam de me afetar, abalar, pararam de me levar a me colocar em questão. Aprendi cada vez mais que cada um é o que é, e se isso tem qualidade ou não, é o que menos importa em si, pois o que mais importa é fazer o que tem que ser feito, o que se impõe, o que somos, o que nos realiza. Sempre haverá quem não goste e quem goste; as comparações não mudam nada do que somos e do que podemos ser e realizar. O que eu diria a mim mesmo se pudesse voltar no tempo de meus primeiros escritos? Diria que eu podia acreditar mais em mim mesmo, que autoestima não é egoísmo, e que não vale a pena se abater pela vocação alheia em fazer tudo parecer difícil.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Meu projeto que ainda não realizei, já comecei, que é concluir meus livros, cada um em algum grau já iniciado… Espero conseguir pôr-me cada vez mais nesse mundo totalmente mágico da dedicação à escrita… Preciso me concentrar, então os livros que eu pretendo ler e que ainda não existem são os que ainda não escrevi. (risos)