André Luís Câmara é poeta e jornalista, doutor em Letras pela PUC-Rio.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu me levanto bem cedo, por volta das cinco e quinze da manhã. Preparo o café, ponho a mesa. Maria, minha companheira, que é médica, sai para o trabalho às seis. Moramos com os três filhos dela. A mais velha, com quase vinte e um anos, e a do meio, que tem dezenove, são universitárias. O mais novo, com dezessete, está no ensino médio. Eu tenho uma filha com 25 anos, recém-formada em psicologia, e um filho, com 24 anos, que estuda arquitetura. Moram com a mãe e o padrasto, mas estão sempre presentes, mesmo que seja por zap ou e-mail. Afinal, já estão bem crescidos, têm a vida deles, né. A meus filhos (Camila e Pedro), meus enteados (Mariana, Carolina e Pedro) e minha companheira (Maria) dediquei meu livro “Rua sem saída”, lançado pela Patuá em 2018. A dedicatória é estendida “aos amigos que vêm e vão”. Agora, com as crianças crescidas, hoje em dia, atendo mais a solicitações do cachorro e da gata aqui de casa. Já faziam parte da família quando, depois de três anos morando em casa separadas, eu e Maria decidimos viver sob o mesmo teto, há quase quatro anos. Baguera, o cachorro, e Tigresa, a gata, ganharam até um poema especialmente feito para eles, ainda inédito em livro. Sou jornalista, tenho mestrado e doutorado em Letras pela PUC-Rio, trabalhei durante muitos anos com comunicação empresarial e assessoria de imprensa. Estou há dois anos sem trabalho formal, o que mudou radicalmente minha relação com a escrita literária, pois agora tenho tido mais tempo para me dedicar à poesia e, mais recentemente, a letras de música. Diariamente, dou uma volta com o Baguera, e só não faço isso se estiver chovendo. Depois, passo o dia inteiro no escritório, mesmo nos fins de semana, com algumas exceções. É onde estou agora. Se há um trabalho de free lancer para fazer, ótimo. Se não há, me entrego à literatura. Aqui trabalho, crio, estudo, leio, escuto música e bebo cerveja.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A hora da escrita já foi a hora possível, quando tinha uma brecha ao longo do dia, já houve a necessidade de escrever durante a noite, varar madrugadas. A gente tem que descobrir meios de encontrar um canto, um minuto para escrever. Não dá para ficar esperando a melhor hora. É ótimo desfrutar do ócio para fazer literatura, para criar, mas é um privilégio de poucos. A gente tem que agarrar os minutos, os espaços possíveis no dia a dia, e não sucumbir a uma ideia romantizada de ter tempo para criar. Mas, como disse, minha rotina é outra, de dois anos para cá. No início de 2018, tive uma passagem relâmpago na editoria de Cidade do Jornal do Brasil, na tentativa de colocar novamente o JB impresso nas bancas. Fiquei menos de dois meses completos e o projeto não foi adiante, não durou além de um ano. Muita gente ficou sem receber salário e teve que entrar na justiça, uma pena. Em maio do ano passado, recebi a resposta da Patuá de que eles iriam publicar o livro que eu havia mandado para lá no fim de 2017, era o “Rua sem saída”. Em pouco tempo, me mandavam a capa para aprovação, que eu adorei, e logo depois acontecia o lançamento. Desde então, sem ter que sair para o local de trabalho, me voltei para a poesia. Prefiro escrever durante o dia, embora algo possa avançar noite adentro, se necessário for. Meu ritual é, basicamente, depois que volto do passeio com o cachorro e tomo banho, faço mais um café, ligo o rádio na MEC FM, fico a escutar baixinho música de concerto enquanto leio e-mails, redes sociais, vejo notícias na internet, no jornal impresso. Quando vou começar a escrever ou a ler um livro ou um artigo que me interesse, desligo o rádio, porque gosto muito de música e ela interfere no meu pensamento, na minha atenção, na minha percepção do que está em volta: gente que passa na rua, o bonde (moro no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro), passarinhos, grilos, um avião. Mas pode também haver um tiroteio intenso, que me desconcentre, me angustie. Aí, aumento o rádio ou coloco um disco, em CD ou vinil, embora também escute muita coisa num pendrive ou no YouTube. No entanto, às vezes, é importante escutar determinada música para dar o clima que você está buscando. Uma música que venha à memória pode lembrar a você certa situação. Meses atrás, eu estava com amigos bebendo em um bar. De repente, enquanto conversávamos, começou a tocar uma música que fez bastante sucesso no início da década de 1980, e isso me trasnsportou a toda uma história vivida com amigos de décadas passadas. Quando cheguei em casa, fiquei pensando na música e na ideia de um poema. No dia seguinte, logo pela manhã, coloquei um disco que tenho com essa música e a ouvi seguidas vezes. A partir dessa emoção combinada com a música, escrevi um poema que estará no meu segundo livro. Estou com cinquenta e quatro anos de idade e escrevo regularmente meus poemas desde os quinze. Meu primeiro livro, “Rua sem saída”, que foi lançado pela Editora Patuá, em julho de 2018, é fruto desses anos todos de tentativa de fazer versos. Cheguei a ter um poema reunido em uma antologia, quando eu tinha meus dezoito, dezenove anos, mas é algo que renego agora. Depois de ter tentado publicar poemas na década de 1980, acabei escrevendo mais para a gaveta. Cheguei até a tentar o teatro, mas larguei o curso da Casa das Artes de Laranjeiras (CAL) no meio. Durante um ano, fui assistente de direção e produção do Marcio Vianna, diretor e querido amigo, que morreu em meados da década de 1990. Fui tratar de trabalhar com comunicação, me formar, depois vieram os filhos, as obrigações da vida, e eu deixei um pouco de lado a vontade de fazer poesia, de me dedicar à literatura. É claro que casamento, filhos e necessidade de manter a vida não são coisas que necessariamente entram em conflito com a vontade de fazer poesia, de fazer literatura. Depende do modo como as pessoas encaram isso, como cada um assume para si mesmo a importância de escrever e, ao mesmo tempo, constroi sua vida. Há quem tenha a perspectiva de carreira a partir da literatura, seja como professor, seja trabalhando em editora, com tradução ou se especializando em jornalismo literário, etc. Muita gente faz isso bem. Comigo as coisas nunca funcionaram do modo mais planejado. No entanto, sou um privilegiado. Felizmente, aos cinquenta e quatro anos de idade, tenho dois filhos lindos criados, que contam com uma mãe dedicada e um padrasto atencioso. Meu filho, inclusive, está atualmente em Paris, num intercâmbio entre a Universidade Federal Fluminense (UFF) e a École Nationale Supérieure d’Architecture Paris-Val de Seine (ENSAPVS).Tenho há sete anos uma mulher maravilhosa que me dá todo o apoio, moramos numa casa adorável, que é alugada, num bairro que amo. Meus enteados me receberam carinhosamente e me aturam no dia a dia. Publiquei meu primeiro livro no ano passado, tenho um novo para ser publicado, e tenho certeza que um terceiro ainda virá.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Meu livro “Rua sem saída” reúne poemas escritos e reescritos ao longo de muitos anos, de décadas até. Mas quando decidi que iria mandá-lo para uma editora, em 2017, fiquei direto trabalhando e retrabalhando os poemas, cortando, acrescentando, às vezes alterando quase tudo. Havia uma dificuldade de transformar o olhar de versos da adolescência ao olhos do homem maduro, então com cinquenta e dois anos de idade. Depois que o livro saiu, em julho, de 2018, houve também um lançamento em setembro, em São Paulo, na Patuscada, que é a livraria e bar que o Eduardo Lacerda, editor da Patuá, mantém para lançamentos de livro e, felizmente, para que escritores bebam cerveja. Voltei de lá e comecei a trabalhar no novo livro, com novos poemas que iam surgindo. Ao longo de um ano, escrevi quase todo dia, incluindo sábados e domingos, nem que fosse para mudar uma palavra, cortar um verso, acrescentar outro, mas sempre demandando horas e horas à frente do computador, atrás daquela palavra que fica a fugir, fugir, mas a gente corre atrás. Foi realmente a primeira vez que tive tempo para me dedicar inteiramente ao trabalho de escrever poemas, ainda que haja tarefas cotidianas que possam interferir na criação, mas são coisas que fazem parte da minha poesia, e que depois podem dar num verso. Esse tempo eu não tive todo quando fiz minha tese de doutorado. Eu então trabalhava, diariamente, na área de comunicação de uma grande empresa. Tinha somente as noites e os fins de semana para escrever, estudar, me dedicar à tese. Mas fui à luta. Durante o mestrado, que cursei de 2002 a 2004, além de ter feito cursos como ouvinte em 2001, em boa parte do tempo eu trabalhava com pesquisa, o que facilitou a distribuição do tempo, que era mais flexível. Ainda assim, pouco antes de defender a dissertação, voltei a trabalhar com assessoria de comunicação e tive que fazer certa ginástica para conciliar as coisas. Mas nem se compara ao sufoco que foi no doutorado, trabalhando diariamente, batendo ponto. No entanto, ao contrário do que eu gostaria, me tornei um desempregado ou, para ficar mais chique, um free lancer sem trabalho, embora mestre, doutor e poeta publicado. E isso dentro de um panorama político dos mais grotescos e desalentadores, não conseguindo exergar uma perspectiva. No entanto, escrever poesia é um modo de resistir, de não se deixar morrer.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Bom, eu tive a experiência com uma dissertação, com uma tese e com um livro de poemas. Escrever é sempre difícil, mas sou jornalista e trabalho na área de comunicação desde os vinte anos de idade, me acostumei a entregar textos no prazo estipulado. O tempo corre, o texto precisa sair. Desde os vinte anos, escrevia press-releases, fazia divulgação, em editora, em assessoria de comunicação. Pela experiência de jornalista, é sempre importante você se inteirar do assunto sobre o qual irá escrever, fazer suas anotações, pesquisar, ir atrás das fontes, das entrevistas. Em trabalhos acadêmicos, como a dissertação ou a tese, não foi diferente. Minha dissertação de mestrado foi sobre Mário de Andrade, e se encontra disponível.
Na época, eu aproveitei bastante dos cursos que fiz durante o mestrado, já que, numa feliz coincidência, muitos falavam do modernismo, e me atirei de cabeça em livros do escritor, na sua correspondência, etc. Já separado da mãe dos meus filhos, morava num hotel, depois de ter feito a besteira de tentar comprar um apartamento, ao invés de alugar alguma coisa. Fiz um financiamento, me endividei completamente, perdi o apartamento, passei por momentos de depressão, mas continuei a acreditar na poesia. E então fui parar no Hotel Santa Tereza, que hoje virou hotel de luxo, de propriedade de um grupo francês. Jamais voltei lá, mas sei que nada tem a ver com o hotel onde morei e no qual grande parte da dissertação foi escrita, tanto que nos agradecimentos eu falo da gerente do hotel, dos funcionários e dos meus vizinhos. Era um quarto simples, mas meus filhos, que estavam por lá, nos fins de semana, até hoje têm as melhores recordações. Um dia, ao fazer um poema sobre meu filho, recordei o que ele me disse certa vez nesse quarto do hotel e incluí no poema “Acalanto para Pedro”, cuja leitura pode ser visualizada no meu canal no YouTube, neste endereço.
Na tese de doutorado já não foi possível aproveitar tanto dos cursos na elaboração da escrita. Eu me decidi por um tema voltado à música popular brasileira, e quis contar um pouco da obra e da vida de Marino Pinto, um compositor que teve uma trajetória de fins da década de 1930 até meados da década de 1960. Morreu aos quarenta e oito anos de idade e deixou quase três centenas de canções, em parcerias com Tom Jobim, Wilson Baptista, Geraldo Pereira, Herivelto Martins, Vadico, Mario Rossi e muitos outros. A tese pode ser acessada neste endereço.
Como se tratava de um autor pouco estudado e até mesmo pouco comentado, fui atrás de muito material na hemeroteca da Biblioteca Nacional, gravações na divisão de música da mesma BN, gravações, partituras e fotografias no Instituto Moreira Salles, entrei em contato com familiares do compositor (ele não teve filhos e sua esposa faleceu há muitos anos), e por aí em diante. E tive ainda a grande colaboração de pesquisadores de música popular brasileira, como Jairo Severiano e Nirez. Sem falar no Lauro Gomez de Araújo, que me cedeu uma foto rara, uma das poucas que mostra o interior do lendário Café Nice, frequentado por muita gente ligada à música popular brasileira, nas décadas de 1930 e 1940. Reuni um material considerável, contei com todo apoio do meu orientador. Mas o trabalho de escrita foi somente intensificado nos três últimos meses da tese, quando chegou ao fim meu contrato de trabalho na empresa em que eu estava. Então, o tempo para a tese, que era aproveitado somente ao longo das noites, ou nos fins de semana, passou a ser diário. No entanto, em uma tese como essa, mesmo que você já tenha tudo anotado, pesquisado, sempre pode aparecer um fato novo, importante para o desenvolvimento do problema, do tema. Assim, até o último momento, tive a necessidade de colher novos depoimentos, de encontrar determinada fotografia, etc. Mas é bom deixar claro que, nessa fase, o texto já estava bastante adiantado, quase finalizado. Era somente o caso de fazer algumas inserções, que me pareciam fundamentais.
No caso da poesia, eu hoje em dia escrevo diretamente no computador. Faço às vezes diversas versões de um poema e vou “salvando como”, para poder ter as diferentes versões gravadas. É claro que muita coisa se perde ao se modificar uma palavra, um verso ou uma parte inteira, nem sempre é possível ficar “salvando como” ou a gente perde a ideia, o momento. Mas sobre fazer anotações e escrever, tenho hoje uma pasta que se chama “Ideias para poemas”. Em princípio, colocaria ali tudo que me vem à cabeça para um verso, um poema. Mas é claro que muita coisa acaba por ir se fazendo de uma hora para outra, sem que haja a elaboração de uma ideia a partir de uma frase ou de um argumento. Um roteiro de cinema, talvez um romance até, são coisas em que é possível sempre procurar colocar primeiro uma ideia, depois o desenvolvimento de uma sinopse, etc. Mas com um poema isso já não se dá dessa forma, a menos para mim. No entanto, foi interessante procurar esse caminho, ter essa possibilidade. No novo livro, há três poemas que saíram dessas anotações e há mais quatro ou cinco ideias que podem ser aproveitadas em poemas futuros.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Antes de mais nada, é preciso enfrentar esse medo de não corresponder às expectativas. O que é isso, afinal? Expectativas de quem? É claro que escrever envolve ansiedade, receios, mas é necessário perder o medo, vencer a preguiça. E isso somente acontece no desenvolvimento da escrita. Então, é sentar diante do computador ou pegar papel e caneta e mandar brasa. Eu considero essencial escrever com o auxílio de dicionários. Tenho o Dicionário analógico da lígua portuguesa, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, que é o tal dicionário usado há muito tempo pelo Chico Buarque. Ele inclusive fez o prefácio da nova edição, que saiu há poucos anos, é a que eu tenho. Mas uso também um outro dicionário analógico da língua portuguessa, de autoria do padre Carlos Spitzer. Tenho a sexta edição, de 1957, da Editora Globo, de Porto Alegre. Importantes para mim são também os dicionários do Francisco Fernandes: um de verbos e regimes; outro de regimes, substantivos e adjetivos; e outro de sinônimos e antônimos. Todos esses são bem antigos e comprei em sebos. Tenho também o Dicionário Aurélio, mas o que acabo usando mais é mesmo o Houaiss, que tenho no computador em versão ainda anterior à nova ortografia. E tenho ainda o “Dicionário de dificuldades da língua portuguesa”, do Domingos Paschoal Cegalla. Alguém pode indagar: “ué, mas vai ficar se prendendo a dicionários, a escrita não deve ser livre, as ideias não devem brotar da imaginação?” Para mim, quem escreve precisa estar constantemente em contato com dicionários, podem ser fonte de muitas ideias, além de, claro, esclarecerem dúvidas em relação a determinada palavra e suas acepções. E escrever está intimamente ligado ao ato de ler, ler todos os livros que estejam ao alcance e que despertem um interesse que você talvez até já tenha por determinado tipo de coisa. Ler as correspondências de autores que tratam muitas vezes do tema da escrita é muito estimulante para quem quer se dedicar a escrever. A indicação de Rilke, em “Cartas a um jovem poeta” pode soar banal e óbvia, mas ainda me parece das mais importantes obras para quem quer escrever. E, claro, toda a correspondência do Mário de Andrade é muito importante. Li diversos livros de cartas dele. Provavelmente as cartas para o Bandeira, ainda antes da edição da correspondência completa entre os dois, talvez tenha sido um dos livros que me mais me marcou. Eu tinha então dezessete, dezoito anos. E foi determinante para meu amor pela obra do Mário, pela poesia do Bandeira, para meus devaneios com o modernismo. Às vezes, para um concurso, para uma prova, somos levados a ler o que não nos interessa muito, mas é imprescindível para aquela atividade, aquele momento. Então, quando podemos desfrutar de algum tempo para ler o que realmente nos interessa, temos que aproveitar isso, fuçar tudo. Um livro leva a outro. Filosofia, crítica literária, crítica de arte, ensaios, literatura contemporânea e os clássicos. “Livros à mão cheia/ e deixem o povo falar”, como diria Castro Alves, que o Caetano cem anos depois atualizou na letra de “Língua”. Os sebos estão por aí, livros em PDF cada vez mais circulam na internet. Temos que ir atrás. Um dia, numa livraria, bati o olho na capa de um livro do Bachelard, que era “A poética do devaneio”. Então, pensei: “esse cara é meu amigo”. Comprei na hora, anos depois aproveitei na bibliografia da minha dissertação de mestrado. Recentemente, na internet, vi uma foto da Mariana Basílio, grande poeta, com o filho recém-nascido de um lado, e do outro um livro do Bachelard. Me deu vontade de ler alguma coisa dele novamente, fui à estante e peguei “A Terra e os devaneios da vontade”, que eu já tinha começado e depois larguei. Tenho o hábito de ler alguns livros ao mesmo tempo. Às vezes, dá certo; às vezes, não. Mas é sempre bom. Tempos atrás, estava lendo a biografia do Lima Barreto escrita pela Lilia Schwarcz, que é um livro de umas seiscentas páginas. Quando eu estava mais ou menos na página duzentos e tal, inventei de começar a ler também a correspondência entre Lima Barreto e Monteiro Lobato, que acabara de comprar, como quem vai montar um curso para si mesmo. Aí não avancei em nenhum dos livros e a leitura ficou pelo meio. Mas tenho que retomar um dia o livro da Lilia. Agora, confesso que a biografia do Lima Barreto escrita pelo Francisco de Assis Barbosa foi um livro que adorei ler há muitos anos, e me lembro que li direto, sem interrupção. Mas, de qualquer maneira, abrir os livros, olhar os prefácios, espiar as orelhas é sempre muito bom, a menos que aquele livro nada tenha a dizer a você. Numa citação pode estar a chave para algo que você procura dizer, e o leva a buscar mais e mais. Seja numa monografia, numa dissertação, numa tese, num poema. Há muitos cursos, oficinas de escrita acontecendo. Se não há como fazer aquilo no momento, por falta de tempo ou de dinheiro, ou pela distância, há muitas formas de se informar, seja em textos que podem ser facilmente baixados ou em vídeos no YouTube, por exemplo. Você pode fazer da sua vida cotidiana, das suas leituras, um interminável hipertexto que vá se sobrepondo a outros, abrindo incontáveis janelas. Para a finalização de um trabalho, é recomendável que você finalize isso, que chegue a uma conclusão. Para sua vida, para seu aprendizado interno, um diálogo com você mesmo e as coisas que procura, não há a menor necessidade de fechar nada. Claro, pode ser um tormento, como todo labirinto, dar uma sensação de estar perdido, mas não conheço outro caminho para escrever.
Para trabalhos acadêmicos, creio que ainda é uma ótima dica o “Como se faz uma tese”, do Umberto Eco. É realmente um grande auxílio para quem não conta com um orientador presente ou com muitos interlocutores. Agora, se você tiver também isso, o livro lhe servirá ainda mais. Eu o indiquei para minha filha, que estava para fazer a monografia final de graduação em psicologia. E ela fez um trabalho lindo, que, apesar de monografia, é quase uma tese, sobre a obra da Carolina Maria de Jesus, tema que tinha a ver com a pesquisa dela sobre racismo na sociedade brasileira. Teve a sorte de contar com uma orientadora presente e interessada em sua monografia, mas o Umberto Eco foi importante para ela estruturar o trabalho, entre muitas outras leituras, claro. E também me ajudou bastante na minha tese de doutorado.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Uma infinidade de vezes. E faço alterações constantemente. Tenho um pouco de tristeza ao ver um erro num texto meu depois dele já estar publicado num jornal, numa revista, num sítio. Um erro de informação, um erro de digitação ou – o mais vergonhoso – um erro de português. Isso acontece com quem escreve, mas deve ser evitado ao máximo e jamais devemos fechar os olhos aos nossos erros. Quase sempre escrevemos em condições adversas. Quem tem condições ideais para escrever? Então, tudo que nos perturba, nos atrapalha, pode nos levar ao erro. Contra isso nos resta revisar e revisar. Pode ser desgastante, mas nunca é inútil. Faz parte do ofício de escrever. Quando se tem alguém para ajudar na revisão, para trocar ideias sobre o texto, é uma maravilha, sem dúvida. É importante procurar sua turma, seu grupo, alguém com quem você possa trocar ideias, ouvir e dar opiniões. Mas isso depende de cada um, relacionamentos não podem ser fabricados ou seguir uma receita. Eu, por exemplo, sempre fiquei muito sozinho na escrita. Tenho uma irmã, cinco anos mais nova, que é escritora, Ana Letícia Leal, e desde cedo enveredou pela literatura infantojuvenil, embora hoje escreva também para público adulto. Seu primeiro livro publicado, “Meninas inventadas”, em 2006, foi finalista do Prêmio Jabuti. Ela, inclusive, dá regularmente cursos de autoficção, que são muito procurados, na Estação das Letras, no Rio. Mas eu sempre escrevi no meu canto e ela no dela. Quem me via muitas vezes escrevendo era meu irmão, Evandro, com quem eu dividia o quarto. Ele demonstrava talento para o desenho, a história em quadrinhos, mas acabou se encontrando na biologia e se tornou mestre em ecologia. Eu nunca me identificava com grupos que se reuniam à minha volta. Morando na Zona Sul do Rio de Janeiro e querendo escrever poesia, nunca fui, por exemplo, a uma reunião do CEP20.000, nunca procurei entrar em contato com o pessoal que fazia a Inimigo Rumor. Mas também não era muito das festas, dos agitos. Embora na infância escutasse rock pauleira, rock progressivo ou o rock mais para a balada, como os Beatles, o que me interessava, aos vinte anos, era Noel Rosa, Paulinho da Viola, Aracy de Almeida, Caetano e Chico. Na verdade, até antes dos vinte, já no início da adolescência, era o que mais me interessava escutar, viver. E ia muito sozinho ao cinema, ao teatro, aos bares. Tenho, sim, queridos amigos, há anos, de papo e de chope. Mas raramente são amigos que escrevem e com quem converso sobre escrever. Isso fez com que eu ficasse muito tempo sem me interessar pela poesia contemporânea, me deixando levar talvez pelo senso comum nostálgico do “não se faz mais nada hoje”. Isso, para quem quer escrever, é uma burrice que não leva a lugar algum. Sempre tem gente fazendo, e muito bem feito. Pode não ser famoso, popular, reconhecido, pode não agradar a muita gente. Mas está fazendo, escrevendo, reescrevendo, e oferecendo a você modos diferentes de ver o mundo, com pesquisas, com leituras. É claro que não é preciso gostar de tudo, se identificar com tudo, mas é importante conhecer ou saber de gente que faz coisas diferentes de você e, quem sabe, em algum momento, essas coisas podem se cruzar com o que você pensa e faz.
Recentemente, por conta de um papo nas redes sociais, mandei um poema meu inédito para meu xará, e grande poeta, André Luiz Pinto, a quem não conheço pessoalmente. Na hora em que eu ia enviar, resolvi modificar algumas partes, embora pensasse que o poema já estivesse pronto. Modifiquei e mandei. Em seguida, me pareceu claro que era necessário alterar o último verso, que dá título ao poema e também ao novo livro que espero publicar em 2020. Mas fiquei na dúvida e encaminhei ao André três opções. Acabei me decidindo pela que ele escolheu, que é agora o nome do poema e também do novo livro. Isso quase nunca me acontece, mas é importante manter uma relação em que escritores colaborem uns com os outros.
Agora, não posso deixar de mencionar que, na maioria das vezes, minhas discussões sobre arte e literatura acontecem com o Jo Oliveira, grande amigo e meu vizinho, mais conhecido como designer e que fez muita capa de disco nas décadas de 1980 e 1990. Ele já publicou três livros de poemas e prepara um novo, somente com haicais. Ele tem fascínio pelo haicai e pela cultura japonesa, fica me falando disso. Eu tentei fazer um haicai e ficou muito ruim, não é algo que eu sinta como meu. Esse ele nem chegou a ver. Jo é um dos poucos para quem mostro um ou outro poema, mas raramente. E me lembro que, no fim da adolescência, eu trocava impressões sobre poesia com o João Coelho, que hoje é advogado, mas chegou a cursar um período de Letras. Recentemente ele passou a se interessar por tradução, sempre gostou dos poetas de língua inglesa.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
De dez anos para cá, quase nunca escrevo à mão. Tenho uma letra muito feia e que foi piorando, piorando. Nunca recorri a um grafólogo, mas é provável que ele visse muitos problemas a resolver na minha letra, embora eu não tenha certeza se devemos acreditar que a letra possa mesmo revelar nossa personalidade. Eu precisava mesmo era de alguém que me fizesse conseguir ter uma letra razoável. Lembro de ter feito aqueles cadernos de caligarfia na infância, mesmo depois de adulto comprei um desses, mas não deram muito certo. Eu me lembro que, numa sessão de análise, há mais de trinta anos, falei desse problema da minha letra. Minha analista pediu para eu escrever e então me disse que não havia problema algum. Eu tinha então dezenove anos. Mas o fato é que minha letra piorou demais. Sempre foi ruim, irregular, mas ao menos era legível. Me dei conta disso ao olhar meus antigos cadernos, quando estava fazendo a seleção dos poemas do “Rua sem saída”. É visível a piora. Tenho pavor de assinar documentos, recibo de entrega dos Correios. Noite de autógrafos para mim é um tormento. Então, sempre foi tortuosa essa necessidade de escrever, essa vontade de formar palavras, frases, versos e, ao mesmo tempo, detestar a letra que faz isso. Mas foi assim sempre. Pego de modo errado na caneta, é um sofrimento ridículo, uma barra. No fim da adolescência, passei a datilografar trabalhos, mas jamais fui um grande datilógrafo, era mais um “catador de milho”, como se dizia, batia à máquina com dois dedos. Inclusive na editora, onde escrevia press-releases. A partir de 1990, já no Ibase, ONG dirigida pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, onde foi criado o primeiro provedor de internet do Brasil, o Alternex, comecei a usar computador, e pouco depois tinha um computador em casa. Para os poemas, mantinha ainda o hábito de escrever à mão. Até que quando vieram os blogues e depois as redes sociais, o hábito de escrever à mão foi sendo deixado de lado.
Posso ainda, é claro, anotar uma ideia à mão. Tenho aqui um monte de canetas e de lápis. Gosto de fazer marcações a lápis nos livros, mas dificilmente escrevo anotações neles. Outro dia, o computador demorou a ligar, e esbocei no papel um poema. Então, pode acontecer, mas é bem raro.
Muitas vezes, uma ideia é anotada no celular ou passo um e-mail para mim mesmo. Certa vez, eu já estava me deitando para dormir e acabara de ver a notícia de que um importante músico, o baixista Arthur Maia, havia morrido. Muitos colocavam mensagens sobre ele no facebook. Então, já deitado, o pensamento fervilhava e comecei a esboçar versos. Peguei o celular e passei para mim por e-mail. Dormi e no dia seguinte, no computador, reescrevi e retoquei o poema. Chama-se “Toque de artista”, e estará no meu novo livro. Foi publicado no site Ruído Manifesto, em agosto, e pode ser conferido neste link.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Olha, isso varia muito. Pode vir de uma notícia de jornal, de um comentário no facebook, de livros que leio, de um poema que alguém me mostra, de uma canção que eu escuto, de um pio de pássaro na manhã, de um silêncio inesperado. Recentemente, no facebook, uma amiga publicou um poema do Cacaso. Na verdade, era uma postagem que ela tinha feito tempos atrás e estava compartilhando novamente, porque gostava muito dos versos do Cacaso, poeta que eu também admiro. E então fui fazer um comentário e, do nada, ali mesmo comecei a escrever versos em homenagem ao Cacaso. Vi que tinha, então, o início de um poema. Assim nasceu “Cacaso”, poema que postei no facebook e que depois gravei em vídeo no meu canal no YouTube. Pode ser visto aqui.
Ao ver esse poema, o Leonardo Almeida Filho, que é poeta, romancista e também compositor, além de artista plástico, me perguntou se poderia fazer a música. É claro que eu disse que sim, e ele, que mora em Brasília, me mandou depois, por whatsapp, a música feita sobre meus versos. Então, foi uma grande felicidade, porque o Cacaso era poeta e letrista, e fez tantas canções. E isso eu sempre quis ser também: poeta e letrista. Eis aí um poema que virou canção e que começou a ser feito num comentário no facebook. Dificilmente sem conhecer literatura e música isso me aconteceria. Então, no meu caso, para me manter criativo, é necessário estar aberto à leitura e à escuta e não me fechar a novos meios tecnológicos. Mas, claro, há quem afirme que se senta com um papel e uma caneta e fica à espera da inspiração vir. É possível, mas não é esse meu caminho. Contudo, para me manter criativo, é fundamental estar sempre perto dos livros e dos discos, seja no formato físico, seja no digital, embora tenha grande preferência por livros e discos que posso pegar.
Outro exemplo que me ocorre é o que fiz, há poucos dias, a partir de uma postagem do José Miguel Wisnik, a quem muito admiro como artista, ensaísta, professor. Ele é autor de um livro magnífico sobre a poesia do Drummond e a relação que essa obra tem com a mineração em Minas Gerais, “Maquinação do mundo, Drummond e a mineração”. Participei até de um curso que ele deu sobre esse livro, no ano passado, na Casa Rui Barbosa, durante três dias. Pois bem, ele voltou recentemente a Itabira, cidade natal do Drummond, e soube que o emblemático sino que era da Igreja Matriz, e que o poeta ouvia badalar, da sua casa na infância, o sino chamado Elias, esse sino ainda existe, na nova Igreja Matriz, perdido no meio de outros sinos. Pois o Wisnik fez no facebook uma postagem dele puxando a corda desse sino e o fazendo soar. Vi isso na página dele e também da Marilia Garcia, grande poeta premiada, a quem não conheço pessoalmente, mas por quem tenho hoje grande ternura. Não só porque me encantei com os versos que ela faz, e demorei a descobrir a arte dela, mas também porque, morando em Santa Teresa, bairro onde ela passou boa parte da sua vida, descobri que conheço pessoas da família dela por quem tenho grande estima e sempre gostei de conversar. Ao ver essa postagem do Wisnik, imediatamente me veio o livro dele à memória, a minha relação com a poesia do Drummond, com quem conversei na rua quando tinha dezessete anos de idade e de quem recebi uma pequena carta, talvez meu maior tesouro literário até hoje. E então fiz, em uma hora, um poema a que chamei de “Badaladas de Itabira” e compartilhei no facebook, juntamente com o vídeo do Wisnik, que pode ser conferido neste endereço.
E os versos que fiz a partir desse vídeo dizem assim:
“Badaladas de Itabira”
Para José Miguel Wisnik
Novamente o sino toca,
reverbera uma Itabira
destroçada em seu minério,
em lembrança de poesia,
eis aí o sino Elias,
Zé Miguel a todos mostra
que é ainda hora do sino,
mesmo que esteja perdido
o boitempo de um menino
arrancado qual minério
de um verso mais antigo,
novamente o sino toca
seu enigma mais claro:
Itabira ainda mora
na memória da poesia.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Certamente, houve um amadurecimento, não só pela idade, mas por coisas que passei a ler, a e conhecer. “Rua sem saída” teve uma tiragem pequena, como em geral são as tiragens da Patuá e de todas as editoras independentes. Os cem primeiros exemplares se esgotaram, mas não houve demanda para sucessivas tiragens, ninguém escreveu sobre ele, ninguém o tem como referência. Publiquei meu primeiro livro exatamente no momento em que me vi sem um trabalho formal, sem poder fazer compra de um lote de exemplares para distribuir a resenhistas, críticos, livreiros. Fiz isso, mas de um modo bem mais tímido do que gostaria, se tivesse recursos. No entanto, foi a partir dele que eu me tornei um poeta publicado e passei a conhecer outros escritores, escritores excelentes com os quais hoje troco ideias pelas redes sociais, por exemplo, como foi o caso do André Luiz Pinto, que contei aqui. É provável que, se eu não tivesse publicado o livro, não conhecesse ainda o trabalho de muitos escritores com os quais hoje converso e troco opiniões. Como Nuno Rau, Alexandre Brandão ou Leonardo Almeida Filho, entre muitos outros, que são bastante importantes para mim. Através do roberto Correa dos Santos, que foi meu professor e esteve na minha banca de mestrado, tomei conhecimento dos incríveis documentários sobre poetas contemporâneos feitos pelo grande Alberto Pucheu, poeta e professor. Escritores como o já citado André Luiz Pinto, Tatiana Pequeno, Bruna Mitrano, Danielle Magalhães, Leonardo Froes e, mais recentemente, Carlos de Assumpção, se tornaram referência para mim a partir desses documentários, que me fizeram e fazem repensar a poesia. Durante o doutorado em Letras na PUC-Rio, conheci o André Capilé, poeta e professor, com muitos livros já publicados. Ele me mostrou os livros do Edimilson Pereira de Almeida, sobre quem ele fez uma tese. Fiquei impressionado e meu interesse pelo Edimilson cresceu quando o vi na Festa Literária Internacional de Paraty, em 2017, a primeira e única, a que assisti. Da mesma forma, os encontros promovidos pelo Leonardo Marona na Livraria da Travessa de Botafogo, e que se chamam “Poetas de dois mundos”, mesmo eu não indo lá, me interesso pelos poetas que se apresentam, pelos temas propostos, pelas leituras indicadas. E o mesmo posso dizer dos eventos promovidos pelo Paulo Sabino, tanto a Ocupação Poética, no Teatro Cândido Mendes, quanto as conversas com poetas, no Espaço Afluentes. Eu fiquei muito tempo desconectado do que se fazia em poesia. Na segunda metade da década de 1990, morando na Rua Maria Angélica, a poucos passos onde então ficava a livraria da 7 Letras, cheguei a ir lá algumas vezes, cogitei a possibilidade de entregar poemas meus para o Jorge Viveiros de Castro analisar, mas jamais me dirigi a ele e nem mesmo me aproximei dos autores de lá. Estava então com filhos muito pequenos, tendo que correr atrás do leite deles, literalmente. E, na verdade, minha concepção de livraria e de editora de poesia ainda era a José Olympio. E olha que eu já tinha sido frequentador da Muro, em Ipanema, na adolescência, que foi tão importante para a divulgação da chamada poesia marginal. Mas não era um frequentador assíduo. Ia mais até a uma Entrelivros, que depois virou Unilivros, ou à Francisco Alves. O Nuno Rau, grande poeta, finalista do Jabuti e do Rio de Literatura, conta que lá na Muro ele entrou em contato com diversos livros desses poetas. Pois para mim isso veio depois. Eu soube quem era Ana Cristina Cesar quando ouvi comentarem sobre a morte dela, no início dos anos 1980. Eu devia ter uns dezoito anos. Pouco a pouco fui sabendo dela, conhecendo, mas minha edição de “A teus pés” já é a feita pelo Instituto Morera Salles, nos anos 1990. No entanto, me lembro de ver a primeira edição da Brasiliense em alguns lugares, bem como “Morangos mofados”, do Caio Fernando Abreu, contos que hoje são muito reverenciados. Mas tem um dia que tudo isso bate e você passa a demolir e reconstruir ou ao menos questionar sua concepção estética, sua procura da poesia, da literatura, e isso é algo que hoje sinto em constante movimento. E foi assim que, felizmente, depois dos cinquenta anos, cheguei a ser um autor publicado pela Patuá.
Quanto a voltar à escrita dos primeiros textos, tenho me aproximado disso ao reescrever poemas que tiveram suas primeiras versões décadas atrás. E é um alívio ver que podem ser inteiramente modificados, melhorados ou desprezados para que outros textos sejam escritos de modo mais maduro e consciente das coisas. De algum modo, aquele rapaz de dezesseis anos, com uma menção honrosa da Livraria José Olympio Editora, que queria publicar poemas e fazer letras de música, pode agora, aos cinquenta e quatro anos, prosseguir com esse desejo, talvez de um modo menos ingênuo. Agora, é uma alegria ver que não parei nos primeiros textos e que ainda há muita coisa a ser aperfeiçoada, o encontro com a tal “voz própria” do escritor. Terei já alcançado isso ou serei somente ainda alguém sob a influência de tantos autores que amo e que, de certo modo, imito? Uma vez, há muitos anos, me disseram que havia nos meus versos a clara referência a estilos de uma variedade de poetas e que isso, se por um lado soava como falta de uma unidade na minha poesia, por outro a tornava peculiar. Terei eu superado essa questão? Francamente, não sei, e nem sei se isso realmente faria algum sentido, mas é possível que sim. De todo modo, no “Rua sem saída”, procurei ver onde poderia estar essa “voz própria”, por mais dispersa que ela ainda se mostrasse. Agora, os poemas do novo livro, aos quais pude me dedicar durante um ano inteiro, me parecem mais coesos, mais maduros ou pode ser que eu me engane. Recentemente, tive sete poemas publicados na revista portuguesa InComunidades, uma publicação digital. Cinco deles estão no “Rua sem saída” e outros dois são ainda inéditos. Curiosamente, o poeta André Giusti, ao fazer um comentário no facebook, disse que, desses sete, o poema que mais o havia agradado tinha sido exatamente o que dá nome ao livro publicado pela Patuá, “Rua sem saída”. Eu agradeci, mas cá comigo ri de mim mesmo. Tenho procurado falar de coisas do cotidiano, ampliar os temas da minha poesia, e aí, exatamente aquele que é um dos mais românticos, é o que mais agrada a um outro escritor? Talvez por isso não tenha sido tão efusivo em meu agradecimento ao André Giusti. Fiz o “Rua sem saída” para me livrar do poema e do próprio livro, quem sabe. Mas, felizmente, há uma beleza ali notada por outro poeta. E isso é muito bom, sem dúvida. E agradeço demais a ele por gostar desse poema.
No trabalho do meu novo livro, surgiu a necessidade de fazer versos metrificados. Eu quis me impor isso, embora tenha mantido alguns poemas com versos livres. E isso veio a partir da constatação de que eu procurava fazer sonetos decassílabos, mas esses decassílabos não mantinham a tradição do verso heróico ou do verso sáfico. Eu considerava isso velharia e, portanto, não me importava. Contudo, a partir de uma entrevista que li do Paulo Henriques Britto, que foi meu professor na PUC e a quem jamais contei que eu escrevia poemas, passei a me incomodar com esse fato e tratei então de procurar fazer decassílabos com versos sáficos ou heróicos. E a partir daí quis ir metrificando os poemas, fazendo octossílabos, heptassílabos, pentassílabos, hexassílabos, eneassílabos. Tentei o alexandrino mas não consegui fazê-lo perfeito, então optei pelo dodecassílabo. Quer dizer, me esbaldei na metrificação. E essa minha preocupação com a importância que ainda se dá, por exemplo, a fazer um decassílabo com verso sáfico ou heróico, eu expus num soneto, escrito em dezembro passado, a que chamei simplesmente de “Soneto”, e que pode ser conferido neste link.
Agora, há quem veja a metrificação como o caminho para a poesia, entendo que o verso livre já se esgotou. Não vejo assim, por mais que se diga que nunca há verso inteiramente livre. Acredito que poetas possam fazer versos com ou sem metrificação. O que não dá é para dizer que “a poesia deve ser isso” ou “a poesia deve ser aquilo”. Cada um na sua e vamos versejar com ou sem métrica, com ou sem rima.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Olha, como disse, estou ainda finalizando, retocando, refazendo o novo livro. Para colocar o ponto final definitivo, espero que o editor, que já me sinalizou que gostaria de lançá-lo em 2020, me diga: “vai ser agora, pode mandar o arquivo com as alterações”. Enquanto isso não acontece, vou cortando e acrescentando versos. Então, não tenho muito como falar de outro projeto a não ser desse novo livro em andamento.
Quer dizer, há sim uma coisa que me deixaria muito contente, é ver as canções que comecei a fazer em 2018 ganharem gravações, vídeos, shows, alguma forma de apresentação, no próximo ano. Em virtude da publicação do meu primeiro livro, gente que faz música e que já me conhecia, ao ver meus versos publicados se interessou em me dar melodias para eu letrar. É ainda um trabalho muito no início, mas que tem me dado grande alegria. Sempre quis ser um autor de canções. Fiz algumas entre os dezoito e os vinte anos de idade com um parceiro que depois foi fazer jinglee se ligou a outros parceiros, mora hoje em Lisboa. Portanto, adoraria que meus parceiros, no próximo ano, venham a mostrar esse trabalho que espero ainda dê muitos e muitos frutos. Já mencionei o Leo Almeida, que musicou poemas meus. Ele também me deu melodias para eu colocar letra. Adorei fazer esse trabalho e ele parece ter gostado. Mas o Leo é também poeta e romancista, lançou três livros em menos de um ano, inclusive em Portugal. Ele mora em Brasília e toda nossa parceria foi feita por whatsapp. Já temos cinco canções. Curioso é que meus parceiros todos vivem longe do Rio, nos falamos e trabalhamos por whatsapp ou e-mail. Uma amiga, que é grande musicista, arranjadora, toca um lindo violão, está há muitos anos nos Estados Unidos, de lá ela me mandou uma melodia que definiu como um samba jazz, o que me remeteu a bossa nova, claro. Ela adorou a letra e espero que venha a gravar nossa canção em breve. Há poucos dias, surgiu a mais nova parceria com uma outra amiga, cantora e compositora que mora em São Paulo. Fizemos um baião muito bonito. Fiquei encantado com a melodia dela e espero que minha letra tenha correspondido à altura. É possível que nossa canção esteja num show que ela deve fazer em São Paulo entre o fim deste ano e o início de 2020. Fico torcendo.
Por fim, um projeto sempre em pauta é incrementar meu canal no YouTube. Por enquanto, vou mantendo a leitura de meus poemas do jeito que dá para ir levando. É de certa forma minha janela para o mundo e pode ser visualizado neste endereço.
Quanto à última pergunta, quem sou eu para falar de um livro que não existe se há uma infinidade de livros que ainda não li e outros que provavelmente não lerei, talvez até esses que estão aqui pelo chão e as estantes de casa, mas dos quais não quero viver longe. Já vendi livros, já doei, outros tantos os cupins devoraram em uma casa onde morei. Agora me cerco dos que mantenho em minha trincheira, não há por que pensar num livro que ainda não foi escrito. Quero mais e mais esses que já existem, que estão aqui ou me esperam nos sebos.