André Caramuru Aubert é escritor, autor de Poesia Chinesa.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa às 5h30 com uma caminhada de uma hora. No fim do trajeto passo na padaria, compro pão e vou para casa. Quando me sento para trabalhar, a primeira coisa é ver e-mails, consultar o banco e pagar contas. E sempre tem muita coisa pra resolver, coisas que não tem nada a ver com a escrita, afinal, como 99,99% dos escritores brasileiros, a literatura não paga as minhas contas. Resolvidas as questões rotineiras, vou atrás do que é mais urgente: colunas para a Trip, traduções para o Rascunho, ultimamente os prefácios para algum volume de quadrinhos do meu tio-tetravô Rodolphe Töpffer que estou organizando. Só depois é que vou aos meus próprios trabalhos de literatura propriamente dita, poemas ou romances.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Prefiro as manhãs, mas trabalho bem à tarde. Só não gosto de escrever à noite, que é quando leio mais.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não. Poemas só escrevo quando a ideia vem. Não forço. Posso escrever mais de um poema por dia, posso passar um mês sem escrever. E, mesmo quando escrevo por impulso, os poemas costumam sofrer, depois, um monte de alterações: cortes, acréscimos, mudanças de pontuação, de quebras de linha, trocas de palavras… Quanto aos romances, começo devagar, escrevendo uma ou duas páginas por dia, na verdade mais reescrevendo do que escrevendo. Reescrevo o começo infinitas vezes. Passo meses nas primeiras cinco ou dez páginas. Mas quando o negócio embala, posso escrever quinze ou vinte páginas no mesmo dia, fico obcecado, tomado.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Nunca é difícil começar. Tanto que começo e recomeço, até achar o tom que considero adequado. E faço muita, mas muita pesquisa para tudo que escrevo. E continuo pesquisando enquanto vou escrevendo, até o fim. Cada livro meu exige a leitura de algumas centenas de livros, fora pesquisas na internet, em bibliotecas, museus etc.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tenho travas. O que me atrapalha são as demandas e as pequenas tarefas rotineiras. E tampouco fico ansioso durante o processo de escrita. Mergulho no livro e, enquanto escrevo, só o que está ali é o que importa. Não me preocupo, pelo menos durante o processo, com a reação das pessoas. Isso vem depois, quando o livro está pronto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Mostro para algumas poucas pessoas. Minha primeira leitora é a Clélia, minha mulher, que vai lendo enquanto escrevo. E reviso muito, reescrevo, repenso. Mas não por temer a opinião alheia, e sim porque eu mesmo demoro a ficar satisfeito. Alguns livros levam anos para escrever. Meu próximo romance vem sendo escrito, abandonado, reescrito, há mais de dez anos. Já foram não sei quantas versões, inclusive versões finalizadas. Mas não estavam boas. Só agora senti que encontrei o tom certo. O romance que estou publicando agora, Poesia Chinesa, me exigiu a leitura de, literalmente, centenas de livros, e infinitas revisões e reescritas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Quase nunca escrevo à mão. Detesto. Minha letra é péssima e o tempo da caneta não acompanha o do pensamento. Escrevo sempre no computador, sou usuário de computadores desde os primeiros modelos, aqueles ainda com disquetes flexíveis, e digito rápido. Aprendi a digitar em máquinas de escrever…
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não sei de onde todas elas vêm, mas posso dizer que fico inspirado quando leio. Borges dizia que é mais importante ler do que escrever, e no meu caso isso é uma verdade absoluta. Na realidade, para mim a leitura é uma condição essencial para a escrita. Mas não me faltam ideias, o que é escasso é o tempo. Tenho mais ideias do que capacidade e tempo para executá-las. Não sei, e digo isso com toda sinceridade, o que é “bloqueio criativo”, que assombra tantos escritores de ontem e de hoje.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar aos seus primeiros escritos?
A página em branco é sempre um desafio, mas não dá para negar que a experiência faz bem. Penso que melhorei, que com o tempo meu texto ficou mais fluido, mais limpo. Mas fazemos sempre o que podemos, em função de quem somos em cada momento de nossas vidas, de modo que não faria sentido eu voltar, hoje, a algo que publiquei há dez, vinte ou trinta anos. De qualquer modo, evito reler meus textos depois que foram publicados, tanto faz se em livro, revista, jornal ou internet. Não gosto, me sinto mal, fico procurando – e encontro! – defeitos. Vejo poetas declamando seus poemas em público repetidas vezes e, honestamente, não sei como conseguem. Eu nem mesmo releio o que já foi publicado, quanto mais ler alto, em público… Nunca! Agora, se ainda não foi publicado, sempre vale uma releitura, uma avaliação: vale a pena retomar isso, mudar, mexer, tem potencial? ou mando de volta para a gaveta, de onde não deveria ter saído?
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho um monte de projetos por começar. Além do próximo romance (o de dez anos), tenho mais três com os temas definidos, dois deles até mesmo com bastante coisa já escrita, esperando para ser relida, reavaliada e, fatalmente, reescrita… E não penso que me faz falta um livro que não existe, já que a fila dos que existem, que quero ler, e ainda não tive tempo, é enorme, e só faz crescer. Leio romances, memórias, ensaios, livros de história, de filosofia, poemas. Leio muito, e sempre há muito por ler. Enquanto respondo a esta pergunta, dou uma olhada para a minha estante, faço uma conta rápida e, vejo um, dois, três… vinte e sete livros, que quero urgentemente ler, que preciso ler, e que estão aqui, junto a mim, empilhados, esperando, na fila… Isso sim me causa ansiedade, e não o que estou escrevendo ou vou escrever…
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Primeiro, os poemas. Não escrevo um “livro de poemas.” Escrevo poemas e, quando sinto que há um número significativo deles dos quais não desgoste, e que há alguma identidade, junto os poemas, coloco na ordem que acho que faz sentido e, pronto!, nasce o livro.
Quanto aos romances, a coisa é bem diferente. Eu parto de uma ideia, monto o projeto (como se fosse a planta de uma casa), com começo, meio e fim, os personagens, os capítulos, a estrutura, tudo. Todos os meus romances têm muito conteúdo, o que me obriga e pesquisar, viajar, ler, ler e ler mais um pouco. Até que, um dia, começo a escrever. As epígrafes são muito importantes para mim, servem como uma espécie de “tom” para cada capítulo. O livro, propriamente dito, começo pelo primeiro capítulo, vou avançando, dois, três, quatro… Mais ou menos por aí eu costumo parar e escrevo o final. Como se fosse um engenheiro escavando um túnel, que precisa chegar num certo lugar, do outro lado da montanha, eu volto aos capítulos iniciais, tendo o final em minha mente. Mas, aí, vou mudando tudo, reescrevendo, indo e voltando, refazendo a planta. Personagens entram, personagens saem… E isso tudo pode levar anos. Meu último romance, Estevão (pronto, mas inédito), levou mais de dez anos para ser escrito. O próximo, Pés Negros, que ainda não está pronto (longe disso), vai bater o recorde, com uns doze anos de trabalho.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Não é questão de preferência. Assim como sempre leio pelo menos meia-dúzia de livros ao mesmo tempo, eu simplesmente tenho, sempre, vários projetos sendo desenvolvidos simultaneamente. Não sei se isso é bom ou ruim, provavelmente é ruim, mas é assim que as coisas funcionam para mim. Sempre tenho traduções para finalizar, prefácios para escrever, pepinos para resolver… O que realmente atrapalha é que os projetos de longo prazo, os romances, acabam sendo prejudicados pelas demandas mais urgentes. Mas é assim que as coisas são, já me conformei.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Não sei exatamente quando decidi que queria ser escritor, mas acho que foi bem cedo. Com dezoito anos eu já tinha uns duzentos contos escritos. Todos eles seguem inéditos, na gaveta, e assim devem permanecer, porque não são bons. Mas fizeram parte de um processo de aprendizagem e de amadurecimento que foi importante para mim. De qualquer forma, escrever é a única coisa que sinto que sei fazer. E já escrevi de tudo, não foi só literatura, não. Já fui colunista de jornal e de revista, já escrevi sobre história, tecnologia, surfe, marketing farmacêutico, meio ambiente, esporte de aventura, estatísticas de segurança no trânsito, e até mesmo… sobre livros!
Sempre achei, quando escrevia, que estava praticando, que nada deixaria de ser útil para meu objetivo mais importante, que era a literatura. Por exemplo, quando uma revista me encomendava um artigo de “três mil e quinhentos toques, para quarta-feira”, aquilo me obrigava a uma disciplina, de forma, conteúdo e prazo que ajudava a me educar. E digo mais: nunca, jamais, em tudo o que escrevi sob encomenda, eu atrasei uma entrega sequer. Se o combinado era entregar no dia 10 com 5.000 toques, no dia 10 o texto estaria pronto, com 5.000 toques.
Naturalmente, em contraste com todo esse universo de escrita por encomenda, com meus romances e poemas, posso me dar ao luxo de não ter pressa. Escrevo, reescrevo, apago, faço de novo… Se o meu próximo romance levar 15, 20 anos para ficar pronto, que assim seja.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Levei muito tempo para desenvolver meu estilo, mas isso acabou vindo naturalmente. No começo eu ficava muito colado nos autores que mais admirava, acabava procurando escrever como eles. Durante muito tempo, por exemplo, eu tentei escrever como Jorge Luis Borges. O resultado, de um ponto de vista literário, é claro, não era bom. Mas, olhando a coisa como parte de um processo, foi excelente, pois ali, com Borges, eu estava treinando a ser sintético, a não abusar dos adjetivos, a cortar, mais do que acrescentar. Outra coisa que aprendi com Borges foi que ler é mais importante do que escrever. Isso não é um jogo de palavras. É verdade. No meu caso, sinto que, quando estou lendo, já estou escrevendo. E grande parte das inspirações que tenho vêm dos livros, vem de poemas…
Tive muitas influências, vindas não só do campo da literatura. Aliás, acho que romancistas e poetas deveriam procurar não só ler bastante, mas, também, ler trabalhos de outras áreas do conhecimento. Por exemplo, no meu caso, autores como o historiador Sérgio Buarque de Holanda, o filósofo Montaigne e o antropólogo Pierre Clastres me marcaram bastante, assim como os viajantes do Brasil antigo, de Hans Staden a Saint-Hilaire, passando por praticamente todos os que deixaram textos publicados.
Da literatura propriamente dita, eu destacaria os que mais me marcaram naquela idade em que as leituras têm o poder de nos deixar imprints: Borges, Thomas Mann, Nabokov, Poe, Conrad, Pedro Nava, José Geraldo Vieira… Nos poemas, as marcas iniciais foram deixadas por Poe, William Carlos Williams e Wallace Stevens.
Além disso, preciso confessar que outras formas de arte também me inspiram e influenciam. Uma tela de Alfred Sisley, um improviso de Keith Jarrett, tudo isso, para mim, pode ajudar a dar à luz um poema ou a imaginar uma cena de um romance, um diálogo…
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Vou seguir um pouco na linha da pergunta anterior, e extrapolar o número. Prosa: Tolstói estabeleceu, com Guerra e Paz, o cânone do romance. A literatura ocidental pode ser dividida entre antes e depois desse livro. Vladimir Nabokov, com Fogo Pálido, escreveu o romance tecnicamente mais perfeito, impossível de superar. Ninguém, como Joseph Conrad, tratou tão bem da loucura ocidental e a potencialização dela em contato com os “trópicos.” O Coração das Trevas é o mais famoso e o maior exemplo disso, mas meu preferido dele é Nostromo. Em Terreno Baldio, José Geraldo Vieira alcançou um patamar raro na literatura brasileira, em ambição, erudição e universalidade. Pena não desfrutar, hoje, do reconhecimento que merece. Os seis volumes de memórias de Pedro Nava são uma aula de erudição, de Brasil dos séculos XIX e XX (especialmente Minas Gerais e Rio de Janeiro), de narrativa, são uma viagem. Ninguém deveria atravessar a vida sem lê-las. Thomas Mann, com o Doutor Fausto, dá uma aula de como é possível incluir o debate de ideias, em alto nível, dentro de um romance, sem prejudicar a arte e a narrativa, sem que precise se dizer “este romance é sobre esse ou aquele assunto…” Thomas Bernhard faz uma escrita na qual não se respira (nem leitor nem, parece, o autor), que eu gostaria de conseguir fazer, mas nunca consegui. Para conhece-lo, um bom começo é Extinção. Natsume Soseki foi o primeiro japonês a conseguir mesclar, com perfeição, as tradições literárias do ocidente e do oriente. Cada livro dele é um deleite absoluto. Se é para citar algum em particular, que seja Sanshirô. Do Borges, como escrevi acima, mostrou, na prática, que é possível fazer o máximo com o mínimo, que saber parar (e cortar) é fundamental. O ideal é ler as obras completas de Borges, mas, se for começar por um volume, pode-se pegar O Aleph. Entre os autores mais recentes (e não falarei de brasileiros, para não provocar ciúmes), eu destacaria W.G. Sebald (que se inspirou em Bernhard mais do que admitiu; pode-se começar com Os Anéis de Saturno) e Roberto Bolaño (aliás, ele era também um grande poeta; acho Os detetives selvagens melhor do que o mais badalado 2666). E um autor genial, de obra pequena e relativamente pouco conhecida, é John Williams. Experimentem Stoner, uma verdadeira aula de romance.
Poesia: a lista seria grande demais, então não vou nem vou começar. Só posso dizer que meus três poetas prediletos, hoje, são Donald Hall, W.S. Merwin e, sempre, nunca deixou de ser, William Carlos Williams. Mas não poderia deixar de mencionar os clássicos chineses, especialmente os da dinastia Tang, como Wang Wei, Li Po e Tu Fu. Não quero falar muito de brasileiros, por conta dos ciúmes e das torcidas organizadas, dizendo apenas que gosto muito de Mario de Andrade, Manuel Bandeira e, entre os atuais, de Ruy Espinheira Filho.