André Amado é diplomata aposentado, escritor e diretor da Revista Política Democrática Online, da Fundação Astrojildo Pereira.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não sou escritor de tempo integral. Antes de me aposentar, escrevia, no começo, em meus períodos de férias. Mais tarde, passei a invadir os meses de trabalho efetivo, sonhando com a chegada da aposentadoria, quando, então, passaria o tempo todo escregendo. Mas, como diz um amigo, aposentadoria é um trabalho ininterrupto, tanto mais tendo filhas pequenas e engatando nova atividade profissional, à frente de uma Revista. Surpreendi-me, assim, de novo incapaz de estabelecer a tão desejada rotina de escritor. Salvo quando inicio um livro. Aí empurro para o lado minhas outras atividades – levar e buscar as meninas do colégio, médicos e festinhas de aniversário; fazer compras de supermercado ou incursões a lavanderia; sair atrás de prestadores de serviço etc. – e sento para escrever com toda compenetração.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Aprendi adulto que produzo melhor de manhã e que, ao longo do dia, em perfeita sintonia com as forças da natureza, minha criatividade anoitece com o pôr do sol. Somente quando acometido de inclemente insônia, ponho-me a escrever à noite, sabendo, de antemão, que a teimosia não me renderá os frutos desejados.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Se tiver começado uma obra, procuro escrever todos os dias. Não copio, porém, Hemingway nem Murakami que, mesmo se a cabeça estiver fervilhando de ideias, determinam quando devam parar de escrever, confiando em que, no dia seguinte, saberão recuperar o ritmo e o impulso da produção literária da véspera.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não faço anotações, menos ainda pesquisa, para escrever. A razão é a de que, em geral, começo um livro sem saber o que vou dizer, aonde irei, tampouco quais serão os personagens centrais, para não mencionar seus perfis físicos ou psicológicos, visões de mundo, seus companheiros de viagem etc. Não chego ao ponto de esperar a contribuição de forças misteriosas, internas ou externas, para me conduzir pela narrativa. Aceito, com humildade, surpreender-me com a revelação da trama, dos conflitos entre os protagonistas, das causas e dos efeitos das emoções. Há escritores que definem de saída até a cor dos olhos de seus personagens e não põem nada no papel antes de conhecer onde tudo vai terminar. Prefiro ser levado pela forças mágicas da ficção.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A procrastinação não é uma trava da escrita. Ficcionistas de romances policiais são useiros e vezeiros em adiar a revelação dos passos da investigação, convencidos de que, quanto mais tarde o leitor conhecer os fatos, maia longa será sua fidelidade. Travas da escrita refletem, em geral, a perda da capacidade de ouvir o que querem dizer os personagens, de apenas seguir o rumo natural e espontâneo indicado pelo dinamismo da trama, ou do poder de imaginação. O importante é nunca valorizar, por falta de criatividade, verdades prontas nem soluções previsíveis.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Revejo sempre o que escrevo no final do dia. Tem escritor que só começa a escrever depois de revisar tudo que já escreveu, e isso todas as vezes que retoma a escritura. Outros apenas reveem trechos considerados como estratégicos. Voltando a Hemingway, ele confessou ter reescrito 39 vezes a cena final de Adeus às armas. No meu caso, gosto de passar os olhos pelo que escrevi ontem, tentando recuperar o fio da meada. Ao terminar o livro, vale dizer, em sua primeira versão, recorro a alguns amigos em busca de comentários, reparos, críticas, e cobro resposta, mesmo que me venha a ferir o ego de escritor. A esse respeito, recordo Drummond: Sejamos francos, todos abominamos a franqueza.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Talvez porque nunca tenha aprendido a usar a máquina de escrever, até hoje escrevo a mão. Sou grande consumidor de papéis destinados ao lixo, documentos antigos, relatórios ultrapassados, cópias xerox etc. Confesso que prefiro as cópias xerox, a BIC corre melhor. No fim do dia, passo tudo para o computador, com dois dedos, técnica que já consegui aperfeiçoar uma vírgula além do tradicional catar milho. É quando faço a primeira revisão, corrigindo, eliminando ou acrescentando coisas.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Vêm da minha cabeça, da minha história de vida, da memória oculta de minhas experiências e, sobretudo, do que li, ouvi ou vi, sem desprezar minhas fantasias de olhos abertos, de alguns sonhos teimosos que me visitam travestidos na manhã seguinte, jamais, porém, de um projeto milimetricamente planejado, com nome, endereço e telefone.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou no meu processo de escrever foi ter lodo cada vez mais. Só que lê muito consegue escrever com qualidade crescente. Aos meus primeiros textos, só tenho de agradecer pela coragem de terem existido, pela generosidade de me terem mostrado o caminho da ficção.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O próximo livro. Sei que virá, mas como nas nove vezes anteriores, não sei o que está sendo cozinhado em alguma nuvem secreta, nem quando desfilará diante de meus olhos, murmurará no meu pé de ouvido, provocará meu paladar, ouriçará meu olfato, como se ainda fosse impossível prever os traços, o formato e o sexo de um filho. Só posso adiantar que, a exemplo do que senti no nascimento de cada uma de minhas cinco filhas, renovarei, já nas primeiras palavras que conseguir escrever em próximo livro, a certeza de que a felicidade efetivamente não tem fim.