Anderson Lucarezi é poeta e tradutor.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Procuro, todos os dias, reservar um tempo para escrever. Esse planejamento requer disciplina, porque as atividades referentes a outro ofício que exerço, o de professor, ocupam boa parte da minha semana. Às vezes apenas reviso algo já feito ou mudo algum trecho esboçado antes, o que não deixa de ser escrita. Gosto bastante dessas revisões, pois, por um lado, posso tocar quase exatamente o cerne daquilo que quis, originalmente, escrever e, por outro, posso chegar a algo inesperado, não planejado. Boa parte do tempo que passo escrevendo consiste, então, nessas revisões.
Com relação a projetos simultâneos, posso dizer que, quando comecei a escrever, preferia me dedicar a um trabalho por vez. Hoje em dia, o simultaneísmo se impõe. Atualmente tenho lidado com um projeto de livro de poemas, outro de narrativa e o desenvolvimento de uma tese sobre tradução literária.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Não há como planejar tudo. Mesmo que você parta de um objetivo bem definido, a escrita se impõe, o ritmo manual-cerebral tece relações, associações, e os desdobramentos disso acabam no papel ou na tela. Essa, para mim, é uma das grandes belezas da escrita: não escrevo apenas para cristalizar algo que elaborei, pensei, testemunhei, mas também para descobrir coisas nesse processo de inscrever caracteres em um papel ou em uma tela. Trata-se, nesses casos em que há descoberta, de uma escrita-inquirição capaz de sondar questões que vão além de uma história bem estruturada, no caso da prosa, ou de uma coesão da relação som / imagem / sentido, no caso da poesia. Quando escrevo, muitas vezes chego a resultados bem diferentes daqueles aos quais me propus inicialmente, o que acho ótimo. Às vezes, depois de identificar essa substância bruta, inesperada, vou burilando o texto, buscando, dentro desse achado, aquilo que penso ter perdido ao chegar a um resultado inusitado, e a escritura vai se desdobrando; é o prazer da escrita. Por isso, para mim, a última frase é mais difícil.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Com relação a poesia, nem sempre sei que estou escrevendo um livro. Acho, então, que a rotina é tentar escrever sempre que possível, mexer em textos começados, voltar a escritos considerados prontos, desconfiar da sensação de acabamento que me dão. A prosa, por enquanto, tem sido algo bastante diferente para mim. O ritmo é outro e sinto a necessidade de uma rotina mais estruturada. Ainda estou tateando essa nova forma de me organizar.
Outra coisa que faz parte da rotina da escrita é a leitura. Não consigo escrever sem ler. Meu processo de leitura, em outros tempos bastante linear e organizado, tem se tornado não linear, flertando com o caos. Leio vários livros e textos ao mesmo tempo; dessa mescla de experiências de leitura surgem ideias.
Com relação ao ambiente de trabalho, prefiro o silêncio. Em silêncio e sozinho, escrevo com mais energia.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
A técnica para lidar com a procrastinação é deixar o celular de lado. Quando me sinto travado, leio ou traduzo.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Agora estou numa empreitada trabalhosa, pois resolvi enveredar pela prosa longa de ficção. Diria, portanto, que esse novo projeto tem sido, por enquanto, o mais trabalhoso, já que não concebo a prosa apenas como uma história bem contada, mas como um campo de possibilidades dentro do qual várias questões ligadas à esfera da linguagem-sociedade podem ser abordadas: ficcionalização, autoria, representação, desvelamento dos enunciados correntes na sociedade por meio da enunciação da narrativa, etc.
No tocante à segunda pergunta, eu diria que a palavra “orgulho” não contempla o tipo de relação que tenho com meus textos. Sinto orgulho de feitos realizados por pessoas amigas. Quando o feito é meu, sinto satisfação ou algum contentamento. Orgulho, nesse caso, soa, ao menos aos meus ouvidos, algo pernóstico, pretensioso. Pode, talvez, soar como falsa modéstia, mas acho importante, dentro do contexto que estou abordando, pontuar essa afetação da palavra “orgulho”, uma vez que o meio literário já está saturado de egocentrismos e autorreferências.
Feita essa ressalva, menciono dois poemas cuja leitura ainda me dá bastante contentamento: “Grau zero”, no qual, a partir do canto do bem-te-vi, procuro mostrar como as palavras falseiam a realidade, e “Sequer o céu é sincero”, um “texto mais-que-perfeito” [sic].
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Publiquei, até o momento, livros de poesia, portanto, é difícil responder tal pergunta, já que os temas costumam ser, dentro da mesma publicação, variados. No meu primeiro livro, “Réquiem”, de 2012, por exemplo, entrei no campo da música erudita para criar núcleos temáticos. Agrupei poemas dentro de seções nomeadas a partir dos segmentos da missa fúnebre que é o réquiem: Introitus, Kyrie Eleison, Dies Irae, etc. Esses poemas são tematicamente diferentes, mas estabelecem algum diálogo com o segmento sob o qual estão reunidos. O interesse pela música erudita, por sua vez, vinha de longa data, pois cresci em meio aos discos do meu avô, que era colecionador e amante desse tipo de música. Ele tinha, por exemplo, a “Requiem Mass”, de Dvořák, em um LP duplo de 1969, cuja capa era Cristo carregando a cruz, de Peter Brueghel. Em parte, então, meu livro foi um diálogo com esse universo dos LPs dele, uma dimensão cujo significado eu, criança, não alcançava. Por outro lado, o livro também tematiza a morte da fé, algo pelo qual muitas pessoas passam, e a morte do próprio planeta, um espetáculo horrível e fúnebre que testemunhamos todos os dias, especialmente nas metrópoles.
No meu segundo livro, “Constelário”, de 2016, diferentemente, todos os poemas lidam com o mesmo tema maior: a vida no contexto cósmico. O “Réquiem” termina com os humanos fugindo de uma anã branca, isto é, da morte do sol, e “Constelário”, em uma espécie de continuação, começa com o o despontar do brilho das estrelas. Pelo fato de eu não ter usado títulos, os textos podem ser lidos como obras independentes ou como partes de um poema longo. Lembro que, na época, fiquei bem concentrado nessa proposta temática, o que foi bom, por um lado, pois o foco me levou a um estado de criação, já que eu olhava o mundo a partir daquele filtro, e ruim, por outro, pois acabei barrando outros textos que poderiam ter surgido. Não acho, no entanto, que livros “coesos”, com temas ou formas harmônicos sejam superiores a livros nos quais a realidade seja outra. O poeta Horácio Costa faz uma defesa bonita disso, dizendo que esse fechamento temático ou formal, no fundo, domestica a poesia. Senti um pouco disso no “Constelário”, ainda que eu goste do livro.
Na miniantologia que lancei agora em 2021, “Afasia perante a algaravia da era”, tentei algo diferente do que fiz no segundo livro. Quis reunir sob esse título irônico-honesto, três poemas do primeiro livro, três do segundo e três que ainda estavam inéditos no meio impresso. Esses escritos não têm uma ligação temática explícita, mas são uma espécie de acerto de contas com esse meu primeiro momento escritural; uma reunião daquilo que acho mais interessante nessa fase inicial do meu trabalho. Senti essa necessidade por conta do impacto da pandemia. Perante o caos do momento, quis fazer um balanço do meu trabalho. Hoje, porém, tenho feito coisas diferentes daquilo, temática e formalmente.
Por fim, para não deixar de responder a segunda pergunta, eu diria que o leitor ideal que tenho em mente ao escrever é aquele que eu gostaria de ser.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Antes de publicar textos, costumo mostrá-los para pouquíssimas pessoas, geralmente escritores próximos. Gostaria, inclusive, de mudar isso, já que considero o debate sobre o fazer artístico algo realmente importante para quem se dedica à escrita. Acredito que nesse mundo de likes e de lacração, a reflexão séria a respeito da criação tem sido algo incomum e, ao mesmo tempo, muito necessário.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Não me lembro com precisão. Provavelmente foi no Ensino Médio, quando tive contato com a literatura brasileira, mas antes disso, quando eu tinha por volta doze anos, já tentava escrever algo, já me interessava pelas letras.
No que diz respeito a dicas que eu gostaria de ter recebido, pouco posso dizer. Talvez algo referente a trabalhar mais no meu primeiro livro antes de publicá-lo.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Acho que é preciso desconfiar desse conceito de “estilo próprio”. Para mim, soa como um patamar ao qual se chega para, depois, desfrutar de certa estabilidade ou de um reconhecimento dos pares, o que não é interessante para quem vê a escrita como uma dimensão aberta à experiência, às inquirições e, consequentemente, a desestabilizações. No mundo de hoje, em que grande parte dos escritores está enredada nas redes sociais, essa fixação por um estilo também parece, ao menos para mim, uma maneira de se distinguir da massa de epígonos, mas de uma forma mercadológica, visando uma distinção capaz de elevar a cotação de um nome no mercado literário. Nesses sites e apps, perfis com selos de verificação ilustram bem essa lógica da validação. Essas pessoas são “autores”, pessoas autorizadas, chanceladas, que também autorizam, chancelam outras pessoas . Nada mais mainstream que isso. Eu sempre olho para essas coisas com desconfiança, ainda que lide com elas. A escrita não pode ser pensada e realizada apenas para que notoriedade seja alcançada.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Isso muda com o tempo. Se tivesse de recomendar algo hoje, recomendaria dois livros que li recentemente: “A rainha dos cárceres da Grécia”, de Osman Lins, e “Abama”, de Samuel Rawet. São duas narrativas que abrem universos para quem se propõe a escrever prosa.