Ana Maria Vasconcelos é poeta, doutoranda em Teoria Literária, autora de “Eram brutos os barcos” (2022).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu, ao contrário de muita gente, acordo bem humorada. O decorrer do dia é que vai me humilhando e drenando as minhas forças! Hahaha. Mas é raro eu acordar de mau humor, então o início do dia é bem especial para mim. Quando não estou correndo para dar aula eu gosto de começar o dia devagar, com música, com comida gostosa. Não tenho uma rotina específica (apesar de já ter tentado várias), mas de modo geral eu procuro separar um tempo para me preparar para o dia. Quando o sol começa a esquentar é que estão chegando as horas de estresse – como diz a Orides, ao meio-dia a vida é impossível – então eu gosto de acordar cedo e ter esse tempo para mim antes que o mundo acorde também.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Com toda certeza eu trabalho melhor pela manhã, mas nem sempre as coisas se adequam às nossas preferências. Então eu escrevo quando dá. Se der para fazer isso nas primeiras horas da manhã, no friozinho, com uma bebida quente e música baixa, excelente. Mas se tiver de ser no meio da gritaria da casa, no calor ou em meio a sono e cansaço, vai assim mesmo. O maior ritual é esse, o de simplesmente comparecer. Isso serve para qualquer hábito. No entanto, é claro que há algumas coisas que nos preparam melhor para o momento da escrita. No meu caso, a minha maior dificuldade é com barulho e interrupção. Às vezes eu gasto mais tempo escolhendo uma música para conseguir entrar num estado propício para escrever do que escrevendo de fato. A Verônica Stigger diz que alguns de seus personagens foram feitos sob o som de uma determinada música, como se houvesse essa relação estreita ali. Eu me identifico com isso, por vezes não saio da mesma música em repetição contínua enquanto estou compondo determinada coisa. É como se eu imergisse no som e aquela música fosse um espaço, mesmo, e eu conseguisse então me locomover por esse espaço, enfim encontrando o jeito certo de escrever determinado texto. É muito sinestésico.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Olha, eu já tentei algumas estratégias, escrever uma página por dia, 750 palavras por dia, meia página, uma estrofe, uma frase ao menos todos os dias. A gente vai barganhando! Hahaha. Na prática, o que funciona, ao menos pra mim, é me predispor para a escrita. Estar fisicamente implicada no processo de escrever, mesmo, ir à mesa, me curvar em direção ao papel ou ao teclado, tomar meu tempo pensando numa palavra, num conjunto de palavras, numa imagem. Fazer disso um ofício diário, acostumar o corpo a essa rotina. Hoje eu escrevo todo dia, até porque tenho uma meta a longo prazo muito clara e estabelecida, mas não me culpo quando não dá. No dia seguinte, volto. Tem funcionado bem, tenho escrito bastante. O que significa que muita coisa vai para o lixo, também, mas essa é uma boa métrica, é preciso jogar muita coisa fora, passar por esse processo minucioso de decisão. Discernir, escolher, garimpar o próprio material.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acho que devemos tomar cuidado para que esse processo de preparação do texto não tome mais tempo do que aquele que é realmente necessário. O texto não se faz senão escrevendo. Muitas vezes nos utilizamos da desculpa de estarmos estudando para escrever sobre determinada coisa para adiarmos esse temido embate com o papel. Ele é inevitável. E, na prática, só é doloroso no início, depois a coisa normalmente vai fluindo, então hoje sempre que posso tento partir para a escrita o quanto antes. Isso em relação ao trabalho acadêmico é um movimento de ziguezague, uma vez que o próprio texto vai pedindo novas pesquisas, e novos rumos vão sendo trilhados durante a escrita. Em relação ao texto poético, penso que este começa a ser escrito quando estamos algo como inchados, acumulados, se é que faz sentido essa imagem. Algo se acumula mesmo dentro de nós e nos inquieta: é em torno disso que vai se construir o poema. Pode ser um assunto que nos perturba, claro, mas pode ser uma palavra que estranhamos, uma imagem recorrente, um som, enfim, um gatilho que se mostra na verdade um caminho. Nesse caso, novas pesquisas vão aparecendo durante a escrita também. Eu adoro pesquisar etimologia e sinônimos das palavras que uso, por exemplo. Passear por essas pluralidades que ficam de fora do poema, mas que o compõem. Os seus outros possíveis (que são os seus outros barrados, também).
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Olha, todas essas coisas – procrastinação, medo e ansiedade – eu experimento até os ossos nos meus textos acadêmicos. Tenho o pacote completo de só funcionar com prazos apertados e sempre andar no fio da navalha. Por outro lado, em relação ao meu trabalho poético nenhuma dessas coisas parece me dominar. Adoro a ideia do projeto longo, de pensar no livro, passar dias pensando em uma palavra que se encaixe em determinada parte, tudo isso me dá muito mais animação do que ansiedade. O medo de não corresponder às expectativas, bem, ele não faz muito sentido porque pessoas vão gostar e pessoas não vão gostar, ponto. Então não tenho nenhuma expectativa a atender a não ser a minha, de estar fazendo um projeto que faça sentido para mim, que se alinhe com o que acredito ser importante colocar no mundo. Depois, meu pensamento é que isso vai atingir a quem tiver de atingir, sem que para isso eu eleja um leitor ideal, nada disso. Quanto ao processo, hoje eu não procrastino mais a escrita de poema nenhum, bato ponto todos os dias nesse ofício, mesmo porque é ele que me alimenta, me ilumina por dentro. Agora, o artigo? O capítulo da tese? Ih, melhor nem falar que já me dá tremedeira.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu teria respostas diferentes para essa pergunta a depender de quando ela me fosse feita. Antigamente era muito difícil eu mostrar os meus textos para conhecidos, eu os compartilhava só com um pequeno número de pessoas que de alguma forma já eram leitores de poesia ou já tinham alguma abertura para aquilo que eu estava escrevendo. Hoje é totalmente diferente, eu adoro mostrar meus poemas para quem não consome esse tipo (ou qualquer tipo) de literatura, as respostas são as mais interessantes! Gosto de receber todo tipo de retorno em relação aos meus poemas, e nesse sentido os grupos de escrita podem ser muito bons (hoje faço parte de um que adoro, que me motiva demais a explorar outras possibilidades de escrita, grupo este organizado pela Ana Estaregui). Já os amigos acabam, na melhor das intenções, passando demais a mão na cabeça da gente, sempre dizendo que está tudo muito lindo, muito bom. A gente sabe que não é assim. Por outro lado, escritor é o bicho mais egóico que existe, então pedir opinião de outro poeta parece iniciar uma espécie de troca de favores que me interessa pouquíssimo. Elogiar para ser elogiada? Que morte horrível! Hahaha. Eu gosto é da sinceridade. Posso discordar, posso concordar, e é por esse diálogo que a coisa vai se tornando frutífera. No entanto, é muito difícil que alguém se disponha a apontar o que não funciona no seu texto justamente porque o ego do escritor normalmente se fere fácil demais. Eu na verdade me divirto muito quando alguém diz que uma passagem ficou muito brega ou muito hermética, por exemplo. Às vezes eu não tinha notado. Mas às vezes era aquilo mesmo o que eu queria. Então esse retorno é interessante, é um termômetro do texto. Por isso também é tão importante a figura do editor (no meu caso, o diálogo com o Nilton Resende, editor do selo Trajes Lunares, foi fundamental para que o Eram brutos os barcos ganhasse a sua forma definitiva). Bom, mas é claro que, depois que vai ao mundo, não temos mais nenhum controle sobre o poema. Um dia desses eu vi uma gravação de uma leitura de um poema meu feito por uma outra poeta em que ela declamou “odeiam” em vez de “ondeiam”, que é a palavra que de fato está lá. Isso num poema em que a ondulação é uma das imagens centrais e no qual não há ódio (embora haja uma espécie de fúria). Eu repensei mil vezes, depois de ver o vídeo, se não deveria ter escrito “ondulam”, como se isso resolvesse o problema, o que obviamente é absurdo, ou mesmo como se houvesse de fato um problema a ser resolvido, hipótese que também caiu por terra para mim logo em seguida. Mas foi um fato muito interessante. Eu tinha usado “ondeiam” por vários motivos, inclusive para evitar o “l” líquido de “ondulam”, já que esse não era o cenário sonoro que eu queria ali, entre outras coisas. O que fica no poema, contudo, é a sua materialidade. As explicações se evaporam. Daí eu parto para dizer que reviso, sim, incontáveis vezes até sentir que o texto está pronto, repenso obsessivamente todas as camadas, cada palavra, cada som – mas isso tudo enquanto escrevo. Ou seja, a reescrita é parte do processo de escrita e se faz mesmo durante. Depois que deixo o poema esfriar, para mim ele se cristalizou. Na maioria das vezes, está pronto. Quando volto a um poema que já esfriou e vejo que preciso mudar algo que não está funcionando ali, normalmente perco o poema, porque na maior parte das vezes as modificações a frio não consertam de fato aquilo que era para ter sido ajustado ainda quando quente. Sei que cada escritor funciona de um jeito. O meu é este: mexer obsessivamente no poema enquanto ele está sendo feito, o que pode durar horas ou, em casos mais raros, dias ou semanas, mas sempre um período de tempo ininterrupto. Depois que sinto que o poema está acabado, está acabado. Daí pra frente o que pode acontecer é ele cair do projeto do livro e ir para o cemitério chamado arquivo dos rascunhos! Hahaha. Ali quem sabe ele ressuscite, mas é mais provável que seja enterrado de vez.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Acho que varia muito. Embora, é claro, muitas vezes eu acabe começando já no computador, no arquivo específico de determinado projeto em curso, o início do texto pode se dar num caderno, no cantinho da lista de presença dos alunos, num papel avulso entre anotações da tese, no bloco de notas do celular ou até numa gravação de voz. O início de um texto é da ordem do incontrolável: quando ele surge, fazemos o que podemos para aproveitá-lo, senão ele se perde para sempre, mesmo. Nutrimos uma falsa sensação de que é possível recuperar o texto depois, por exemplo quando vem uma ideia no meio da noite e bate aquela preguiça de anotar – mas o fato é que não recuperamos realmente, ele sempre volta quebrado (talvez até vire outro texto, mas aquele texto se perdeu). Então eu sempre tenho à mão um recurso qualquer para que a cisma (que é o que dá início a um texto) não me ache despreparada. Não que se trate exatamente de inspiração, o que acontece é que a cisma (assim estou chamando aquele iniciozinho de texto, ainda no fundo da mente) às vezes empaca quando estamos olhamos muito para a nossa ideia fixa, o que pede uma espécie de relaxamento. É aí, no nosso movimento de distração, que a cisma pode nos assaltar de modo mais certeiro. A Clarice Lispector fala bastante sobre isso em vários textos – no fragmento “Por não estarem distraídos”, por exemplo. É preciso orbitar em torno de outras coisas para que aquilo que queremos fazer ache seu espaço em nós. Isso, sem contradição, é também parte do trabalho e da disciplina.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Nós subestimamos muito o nosso poder de direcionar o nosso olhar. Acho que as minhas ideias vêm da vontade de estar sempre numa espécie de “estado de escrita”, se é que isso faz algum sentido. O que quero dizer é que hoje procuro estar sempre com os poros abertos para pescar possíveis fios de texto nas coisas que acontecem. O cotidiano nos oferece isso o tempo todo, basta entrar nesse modo de ver as coisas. E aqui não me refiro necessariamente a um fim de tarde bonito em frente ao mar ou algo inerentemente “poético” (que palavra péssima, aliás! Concordo com as personagens do conto “A mensagem”, da Clarice, que a detestam), digo mesmo daquilo que por algum motivo desautomatiza o estado das coisas às vezes até inadvertidamente. Dou um exemplo: esses dias, estava assistindo a uma entrevista de uma escritora de que gosto muito, conduzida por um péssimo jornalista que interrompia a autora o tempo inteiro. Eu, irritada, só ameacei várias vezes fechar a aba do youtube, mas ela, quando conseguia falar, dava respostas maravilhosas, então persisti. Eis que a certa altura a entrevista me dá um uma imagem perfeita para continuar um poema que eu havia pensado em começar – mas não pela fala da autora de que eu tanto gosto, mas justamente pela fala do detestável jornalista, que utilizou uma determinada palavra de modo muito peculiar. Enfim, por mais inconveniente que o entrevistador tenha sido, aquele momento me rendeu um poema de que gosto bastante, simplesmente porque eu estava com olhos de ver (ou ouvidos de ouvir, no caso), mesmo na situação mais aborrecida do mundo. Para além disso, hoje eu procuro escrever todos os dias, mesmo quando estou cansada ou aparentemente sem ideias. É preciso manter o hábito, o movimento do corpo, mesmo, a inclinação das costas, é preciso se colocar em serviço por inteiro. Também procuro ler todos os dias, o que já faço por conta do meu trabalho, mas me refiro a ler sobretudo os meus pares, ler o que está sendo feito agora, pensando nos procedimentos. Ler não exatamente avaliando se gosto ou não, mas pensando se aquilo faz sentido para o que quero produzir ou não. São modos diferentes de ver. Então manter a mente curiosa e os olhos famintos são o meu conjunto de hábitos. Ah, sim! E exercício físico. De alguma forma o corpo precisa se cansar todos os dias para que a mente consiga se organizar melhor. Se meu corpo para, minha mente definha junto, nisto tenho sido muito helênica depois dos 30.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
De início eu penso que diria apenas “não pare”, porque tive muitos hiatos ao longo dos anos, especialmente durante a graduação de Letras. Não que eu não amasse o curso, ao contrário, acho que, por amar demais o que eu estudava, acabei me concentrando totalmente em absorver, analisar e estudar literatura (e teoria, linguagem, tudo isso) o máximo que eu podia. Não sobrava muita energia para produzir. Também tem o fato inegável de que o impacto de ler textos quase perfeitos como, sei lá, os do Saramago, os do Flaubert, os da Hilda, isso apequena um pouco a gente. Eu lia um conto do Guimarães Rosa e pensava “pronto, vou escrever pra quê depois disso? Tudo já está feito!” Hahaha. Então eu parei por esses e outros motivos. Eu sentia falta, mas só sabia o tamanho dessa falta quando voltava a escrever e, não sei, uma luz reacendia, mesmo, uma vontade de viver, era algo dessa ordem. O gesto criativo é muito poderoso. Por outro lado, penso que seria violento se de fato eu tivesse o poder de me dar esse conselho quinze anos atrás, o de não parar. As pausas tiveram suas razões e o meu olhar de hoje é mais acolhedor em relação a esses processos. Também relutei muito até concordar que os meus textos seriam interessantes para as outras pessoas, então talvez eu dissesse também para pegar mais leve comigo mesma. É possível que essa mudança de percepção tenha sido o que mais se transformou no meu processo de escrita ao longo dos anos: passar a olhar o que escrevo como objeto estético, como objeto artístico. No início, escrever era uma necessidade muito visceral, um modo de conseguir estar no mundo, algo que me salvava, mesmo. Que me dava o que fazer com as mãos enquanto eu era atravessada por sentimentos muito maiores do que eu. Então eu escrevia para mim. Ainda sinto que a escrita é uma necessidade, mas hoje entendo que efetivamente posso fazer algo com isso, criar algo bem pensado, bem acabado, lançá-lo ao mundo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Ah, tantas coisas! Eu sinto que adiei muitos dos meus projetos literários por achar que ainda não estava pronta. Hoje eu acho isso uma bobagem, porque de fato nunca estamos prontos! É uma meta que vejo só servir como autossabotagem, então fico tentando driblar o perfeccionismo para que ele não me paralise. Tenho muitas ideias para futuros livros de poemas, mas de alguma forma eu já tenho os embriões deles em curso. O que eu tenho vontade de escrever também, mas mais para frente (será que estou sendo pega em flagrante adiando tudo de novo?), é um livro de ficção que explore a ruína do enredo como uma força narrativa, metalinguística, em que o próprio espaço ficcional seja apontado como uma arena de palavras. Esse é o livro que eu gostaria de fazer e não comecei. O livro que eu gostaria de ler e que ainda não existe não poderia ser esse, uma vez que muitos ficcionistas contemporâneos (e não só) trabalham exatamente nessa direção, embora, claro, cada um a seu modo. Acho que esse tal livro hipotético seria algo parecido com o que o Georges Perec fez no seu La disparition, só que em vez do “e”, o que sumiria seriam todas as palavras centrais do assunto do livro. Algo como o procedimento que o Hemingway opera nos seus contos, mas sem a sua extrema concisão. Pelo contrário, um livro que fosse um incurável defeito de linguagem, para citar o Agamben. E que, por ser quebrado e transbordante, apontasse o dedo para o nosso mundo, como se o espelhasse. Não sei, um livro cuja forma incompleta e opulenta apontasse para os erros que perpetuamos como uma sociedade do excesso em que falta o essencial, que precisa que pessoas morram de fome e trabalhem por salários indignos para manter uma produção ensandecida de coisas que vão para o lixo etc. Enfim, um livro que representasse isso na forma, não no assunto. Não estou certa de que ele não exista.