Ana Lúcia Merege é escritora e curadora de Manuscritos da Biblioteca Nacional.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Eu tenho que dividir meu tempo entre as atividades que realizo na qualidade de curadora da Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional e meu trabalho de escritora. Este, por sua vez, inclui não apenas escrever, mas pesquisar, revisar, trocar ideias (com editores, revisores, companheiros de escrita…) e, ainda, marcar presença em redes sociais, o que hoje é indispensável, mesmo para quem conta com uma editora.
Numa semana típica de trabalho, eu acordo uma ou duas horas antes de ter de me arrumar para ir à BN, e uso esse tempo para escrever (porque sou matinal e meus textos costumam fluir melhor logo cedo, antes de entrar na Internet e começar a fazer as interações do dia). No trajeto de ida e volta leio, escrevo, observo, e à noite pesquiso, reviso, preparo postagens mais longas para as redes. Agora, em home office, isso ficou bem mais caótico; meu marido e filha costumam dormir tarde, eu acompanho mais o ritmo deles, fica mais difícil dedicar uma ou duas horas à escrita antes de me envolver com tarefas domésticas ou ter que sentar para dar conta das coisas da Biblioteca. Posso dizer literalmente que eu escrevo nos intervalos, na “hora que dá”, e acabo fazendo mais de uma coisa ao mesmo tempo: escrevo um post enquanto ouço um podcast, por exemplo, ou faço uma busca em base de dados ao mesmo tempo que vou acompanhando uma live e interagindo pelo chat.
Ainda assim, eu costumo fazer uma lista de todas as atividades pendentes, bem como um plano de metas. Por exemplo: numa semana posso ter como meta concluir um conto ou um capítulo de livro, revisar dois textos, participar de uma live. Encontro os intervalos de tempo e vou encaixando essas atividades. Não tem como ter apenas um projeto acontecendo, porque os projetos de escrita se dividem em várias fases e uma coisa vai se encadeando na outra. Neste momento, eu estou escrevendo um conto de fantasia histórica, pesquisando para um futuro livro de fantasia urbana, ajudando a divulgar dois projetos coletivos, revisando contos e articulando uma porção de outras coisas. Mas, se a pergunta se refere exclusivamente a trabalhar na produção de uma primeira versão de um texto literário, eu costumo me dedicar a apenas um por vez. Mesmo que em alguns textos mais longos eu tenha parado por um tempo e escrito outros mais curtos antes de retomar. Quando escrevo, gosto de mergulhar num universo e num modo narrativo, e em geral é complicado fazer isso de duas formas diferentes na etapa da criação.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Eu não planejo tudo, mas planejo bastante. Sei onde quero chegar e alguns pontos que não podem faltar. Mas entre eles pode haver muita coisa que eu não vislumbrava no início; não sou avessa a mudar de planos. O mais difícil para mim é sempre a conclusão, pois sempre tenho a impressão de que estou sendo piegas ou usando frase clichê ou terminando de um jeito sem graça. Invariavelmente as minhas frases finais são reescritas pelo menos uma dezena de vezes.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Mais ou menos. Eu tenho um roteiro, sei o que vai acontecer em linhas gerais. Alguns livros tiveram roteiros mais detalhados, outros foram se organizando à medida que eu escrevia, mas sempre com aqueles “marcos”, aqueles pontos que eu estabelecia no início, pelos quais a história devia passar. Em geral faço boa parte da pesquisa antes e vou complementando conforme a necessidade. E frequentemente fico sem ler ficção fantástica quando escrevo nesse gênero, ou leio uma ficção fantástica bem diferente daquela que escrevo.
Eu reviso com música, escrevo post ouvindo podcast, mas para a etapa da criação preciso de silêncio. Não absoluto: costumava escrever, por exemplo, na barca ou em cafés. Mas não pode ter música, nem TV ligada, nem pessoas falando comigo. Só ruído de fundo.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travada?
Vou arejar a cabeça com outras coisas, música, filmes, leituras… Sempre tenho revisões para fazer, trabalhos que não são tanto de criação, então aproveito os hiatos criativos para fazer isso. Um pouco de afastamento do texto complicado costuma ajudar. Se, porém, tenho de lidar com aquilo de qualquer jeito, por ter um prazo ou algo do tipo, tento outra perspectiva. Escrevo o fim e depois preencho a parte que faltava, escrevo os diálogos e depois recheio, escrevo o clímax… Algum jeito a gente sempre dá. Mas houve textos que não saíram de jeito nenhum; por sorte são histórias que dependem só de mim, não eram para uma coletânea, nada que eu tivesse prometido a alguém.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Os contos das coletâneas “Excalibur” e “Medieval” foram difíceis de sair. O segundo, principalmente… Levei meses escrevendo, mudei de ideia e de personagens muitas vezes, ficou completamente diferente do que eu pensava a princípio, mas acabou ficando bacana. Eu me orgulho de todos os textos que escrevi, mas o livro que mais me reflete e está próximo ao meu coração é “Anna e a Trilha Secreta”. Estamos ali eu, minhas crenças e convicções, o que eu entendo por família, amigos e contar histórias.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém uma leitora ideal em mente enquanto escreve?
Eu não escolho os temas, eles vêm até mim. Alguns vêm num lampejo, outros são propostos por editores e organizadores de coletâneas. Alguns brotam dentro de contextos, universos, em que já estou escrevendo. Não penso num leitor ideal, as histórias meio que se apresentam para mim na forma e na linguagem em que devo contá-las. Claro está, se eu estou escrevendo para jovens, tento escrever de um jeito e com um vocabulário que eu acho que serão adequados a esse público, se é uma história de terror eu penso no que funciona para leitores de livros de terror, no que vai prender a atenção deles. Mas se eu decido que vai ser de um jeito, assim eu faço. Se a história não me satisfizer, os leitores provavelmente também não irão gostar.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Não mostro rascunhos, mas primeiras versões depois de bem revisadas. Em geral encontro dois ou três leitores críticos, pessoas que eu sei que se identificam com aquele tipo de história e irão opinar com sinceridade, mas com conhecimento de causa. Nem sempre são escritores. “Anna” e “Orlando” tiveram minha filha adolescente como uma das leitoras críticas e isso me ajudou muito. Já o conto de “Contos de Fadas Sombrios” foi lido por ela e por mais três escritores. E tem alguns contos, em geral os bem curtos e escritos a convite, que vão direto para os organizadores das coletâneas ou editores de revista; eles são os primeiros a ler e fazem observações caso julguem necessário.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Comecei a escrever muito cedo, ainda era criança, portanto não tem um momento preciso. Decidi que essa seria uma das minhas carreiras quando estava com uns 16 anos, mais ou menos, e na mesma ocasião decidi que teria outra profissão, pois não acreditava possível viver de escrever ficção (e foi uma boa coisa a que eu fiz, pois gosto de ser bibliotecária). O que eu gostaria de ter ouvido? Nem sei, eu comecei com expectativas bem modestas, sabendo que seria difícil publicar, que provavelmente não venderia muito, que costumava haver muitas tretas entre escritores (como aliás existe em todos os meios). Acho que fui em frente, com certo receio, mas de olhos bem abertos.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Não encontrei dificuldade, porque escrevo há muitos anos e isso simplesmente aconteceu. Nunca estive na situação de olhar para um texto meu e achar que precisava de um estilo próprio. O que já achei, e muitas vezes acho, é que um texto precisa melhorar, precisa de mais trabalho, aí sim, mas não é uma questão de voz própria. Certamente meu estilo de escrita foi influenciado por Marion Zimmer Bradley em “As Brumas de Avalon”; tem ecos do jeito como ela escreve nas histórias de Athelgard, mas tem de outros autores também.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Depende da pessoa. Digamos que ela queira ler algo meu e peça uma sugestão: eu tenho que saber se ela gosta de conto de fadas para recomendar “O Caçador”, de aventura para recomendar “Jack London e a Criatura de Salmon Pond”, de alta fantasia para recomendar os livros de Athelgard… Mesma coisa com livros de outros autores. Cada livro tem seu leitor e ninguém gosta de tudo, eu recomendo com base no que acho que aquela pessoa irá gostar. Claro que se alguém pedir “me recomenda um bom livro com temática de mitologia grega” eu recomendo “Circe”, de Madeline Miller, se alguém pedir um de fantasia folclórica eu recomendo Simone Saueressig ou Lauro Kociuba, de medieval hardcore recomendo Eduardo Kasse, mas sempre vai depender da demanda e da pessoa. Em termos de livros e de gente – nada como a diversidade!