Ana Elisa Ribeiro é escritora e pesquisadora, autora de Álbum.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa mais cedo do que eu gostaria. Não sou boa em acordar cedo e jamais fui. Só mesmo por necessidade. Durmo tarde, gosto de trabalhar à noite, e acordar cedo faz um mal danado para a minha capacidade e a minha inteligência. Mesmo assim, sendo isso a vida toda, tenho de acordar às 6h para auxiliar meu filho adolescente, até que ele vá para a aula, que começa às 7h (acho estúpido esse horário de aulas). Depois disso, tento fingir que nada aconteceu e volto a dormir. De vez em quando fracasso, porque aí as preocupações já se instalaram na minha cabeça. Mas na maioria das vezes dá para tirar ainda um sono, mesmo não sendo mais igual ao repouso da madrugada. Minha rotina, então, não tem nada de romantizada. Acordo às 6h para cuidar de filho, como milhares de mães, e tento descansar para tocar o resto do dia normalmente. Minha rotina de trabalho só começa depois das 10h da manhã e não tem hora para acabar. Considerando que eu me levante mesmo em torno das 9h, tomo um cappuccino e vou para o computador iniciar minhas leituras, aulas, escritas, etc.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho ritual de preparação para escrever, mas sei que trabalho melhor da tarde para a noite, às vezes à noite mesmo, perto das 22h. É meu ritmo desde criança, sem exagero. E eu aprendi a respeitar. Minha inteligência ferve nesse horário. Mas basta estar em casa e me sentar diante da tela do computador. Nada de cenas. Preciso de algum silêncio e nenhuma interrupção.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende do que estou escrevendo. Posso dizer que, no geral, escrevo em períodos concentrados, mas é que cada gênero de escrita pede uma coisa. A poesia vem mais ou menos quando ela quer, em momentos concentrados. A prosa, especialmente a crônica, costuma ser por encomenda, então exige um tanto mais de disciplina, esforço, pesquisa, cadência. Há os textos para livros infantis ou juvenis, que costumam ser ideias que serão brevemente executadas, em períodos concentrados também. E tem ainda minha escrita acadêmica, à qual me dedico com igual paixão. Essa é mais constante, exige leitura e muita concentração. Neste momento, estou a escrever um texto acadêmico e ele tem me tomado muito tempo. Precisei ler, pesquisar e pensar para produzi-lo. Estou aparentemente parada, num momento de refletir sobre os dados que quero analisar. Então cada ritmo é um pouco ditado pelo gênero discursivo a ser escrito.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo não conta com notas. Me movo, sim, da pesquisa para a escrita, a depender do gênero, de novo. Não uso blocos, celular, nada. A ideia normalmente vem quando estou mesmo na posição de escrever, isto é, no meu computador. É uma provocação. De vez em quando, é claro, pinta uma anotação, uma ideia que me assalta e eu preciso logo realizá-la, anotá-la. Mas é incomum, para mim. Normalmente eu me disponho a escrever diante da tela e ali as coisas se formulam.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lido mais com procrastinação ou com interferência de outras prioridades do que com trava. Não me sinto travada, normalmente. Projetos longos são mais raros, depois que você defende sua tese de doutorado. Não sou romancista. Então raramente preciso lidar com projetos que me consumam tempo contínuo longo. Às vezes até penso que não sou romancista por absoluta falta de tempo contínuo! Já a procrastinação é uma praga… mas lido bem quando ela acontece. É que tenho certeza de que não é hora de o texto se realizar. Fico calma, espero. O texto precisa amadurecer e ele vai fazendo isso no cérebro. Não é exatamente no papel que ele faz isso, ou pode não ser necessariamente no papel. Eu escrevo o tempo todo, dentro da minha cabeça. (Aliás, qualquer adolescente sabe o que é isso… ter ideias e não passar para o papel). Só que eu sei gerir isso bem. Com o tempo, a ideia sai, precisa sair, ser executada. Não fico ansiosa. As prioridades que se atravessam diante da escrita poética, por exemplo, é que me deixam mais nervosa, irritada. Poxa, você precisa escrever um poema e uma coisa bem besta se antecipa. Coisas que você tem de fazer, entende? São mais importantes, naquele momento. Lá vou eu cumpri-las, louca para voltar ao poema. E sempre volto. Uma escritora precisa se proteger das coisas bestas o tempo todo. E não ligar se os outros acham que o poema é que é uma coisa besta a atravessar diante da vida importantíssima e sem sentido.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A revisão dos textos também depende do gênero discursivo produzido. Um poema pode ser revisado uma ou mil vezes. Às vezes, nenhuma. Uma crônica para uma coluna de revista pode ser revisada uma ou duas vezes por mim e outras vezes por revisores profissionais. Um texto infantil é revisado por meus pares. Então depende. Já a leitura de gente de confiança é sempre boa. Nem sempre faço isso porque as pessoas já são muito ocupadas e sinto uma certa segurança quanto a alguns textos, mas normalmente envio a poesia e talvez o texto acadêmico para que amigos leiam e comentem. Na literatura, é bom encontrar amigos francos, honestos. Não apenas gente para jogar confete. Mas é preciso também ter segurança e ouvir, para concordar ou discordar. Às vezes, o comentário do outro só nos deixa mais seguras do que não queremos. Manter algo é fazer uma escolha. Ela só precisava ser consciente. Outras vezes, é ouvir e refazer, jogar tudo fora, ou quase. Tenho meia dúzia ou menos de amigos que leem originais, comentam, resenham, apontam, criticam. Nos últimos anos, o escritor Sérgio Fantini tem sido interlocutor de alguma prosa que eu escreva; a poeta Adriane Garcia foi leitora de poesia ou de algo que pensei ser poesia. Adriane e Sérgio são sérios, francos, até duros. Na prosa acadêmica, tenho a interlocução impagável do Sérgio Karam, incluindo algumas coautorias. O texto acadêmico permite explicitar a coautoria. Adoro.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia é próxima, íntima. Ela é um dos meus objetos de estudo, inclusive. Escrevo diretamente no computador, em 99% dos casos, há muitos anos. Aderi logo às máquinas. Quase não há manuscritos meus. Acho uma imensa perda de tempo o “passar a limpo” que o manuscrito me exigiria, embora eu fique com pena de não haver originais em papel. Para os arquivos de escritora… isso é terrível.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias para poemas vêm de qualquer coisa, principalmente as banais. Não sei se cultivo algum hábito para me manter criativa. A criatividade, nesse sentido, é uma coisa que faz parte da pessoa. É o jeito como a gente olha, vê, vive. Não necessariamente que seja um dom ou uma excepcionalidade. Faço o possível para que as coisas bestas da vida e do trabalho não me engulam. Esse é o cuidado que eu tomo. Como a escrita literária pode ser confundida com vadiagem e com inutilidade, é preciso impor limites e respeito quando somos deliberadamente atrapalhados. Isso é o que faço. Gosto da interação com pessoas, gosto de observar as coisas, viver a vida com a atenção acesa, ver, ver, ver, sentir. Isso mantém o tônus do que chamamos de criatividade. Ler, pensar, assistir, dar a volta, repensar e, claro, ter um pouco de coragem enunciativa. Isso, na academia, por exemplo, é um problema. A gente aprende a repetir e a concordar. É meio corajoso dizer algo, propor um modelo, incrementar algo de outrem. Mas não que isso seja um conjunto de hábitos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Acho que o processo de escrita muda e a gente nem sempre se dá conta. Hoje escrevo mais rápido e tenho mais noção do que estou fazendo. Mas isso é prática, é treino. Se eu voltasse à escrita da minha tese… eu mudaria alguns trechos, termos, ajustaria aqui e ali. No geral, ela é o que é. E foi boa. Não me arrependo dela (isso pode acontecer). Vou ficando mais consciente, acho. Já escrevi coisas e depois pensei: hoje eu não faria assim. Por outro lado, às vezes leio um texto já antigo, surrado e penso: “nossa, que legal que eu fiz isso trocentos anos atrás!” Depende.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou sempre escrevendo. Os projetos que vim produzindo, nos últimos tempos, estão todos em execução, todos saindo. Eu tinha o sonho de escrever um livro sobre meu bairro e a região onde moro. Era um sonho que me parecia delirante. E toda vez que eu via a coleção “BH, A cidade de cada um”, coordenada pelo José Eduardo Gonçalves e pela Silvia Rubião, eu pensava: nossa, como deve ser legal estar ali naquele time! Deu certo. Sonhei, produzi e aconteceu. Meu livro Renascença é o 31º da coleção, a ser lançado em agosto agora. Isso me dá uma alegria infinita. Quase nada me dá tanta alegria e ânimo. Pensei mais dois projetos acadêmicos para 2018 e ambos estão em produção, por editoras que admiro, que só vão me dar alegrias, tenho certeza. O livro de poesia que pensei mais recentemente, o Álbum, saiu em maio, também por uma editora que adoro, a Relicário. Então não tenho deixado projetos na gaveta. Mais que isso: tenho executado coisas que pensei serem difíceis de alcançar. É muito gratificante. O livro que eu gostaria de ler e que não existe… não sei qual é. Mas se eu pensar nele, já o estarei produzindo! Bom, isso quanto à minha escrita. Há os livros dos outros que eu adoro ler e há os que ainda lerei. Ainda lerei poesia boa de poetas que admiro, romances de pessoas queridas que também ficarão felizes por lançar novos livros interessantes, enfim, sempre há o que admirar.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Depende do projeto. Tem dos dois jeitos. Já publiquei livros que são conjuntos de poemas ou de contos ou de crônicas que foram fluindo, durante muito tempo. E já publiquei ‘projetos’, no sentido que de abracei um mote, um objetivo, um tema, uma forma e fiz já fechadinho. Deste segundo jeito costuma ser mais rápido. Às vezes foi porque eu quis, outras vezes foi de encomenda. Eu também quis a encomenda, mas é que a proposta vem de fora primeiro. Acho mais difícil escrever a última frase. Gosto de chave-de-ouro, de rima, de forma. Gosto de concluir bem, naquele modo “lacrou”, sabe? Nunca gostei de fade out, por exemplo. Então a finalização sempre me dá um pouco de ansiedade.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Eu ri um pouco desta pergunta, mas ri de nervoso, de tristeza. Quem me dera ter uma “semana de trabalho” dedicada à escrita. É o sonho da minha vida e ele está cada dia mais distante, já que minha aposentadoria agora concorre com minha ida pro beleléu. Quando eu era bem jovem e ainda passava pelo processo de escolher faculdade, profissão, etc., eu achava que teria jeito de me dedicar à leitura e à escrita. À medida que fui concluindo as etapas, mudando de patamar, entendendo a lógica das coisas, fui vendo que não, a escrita não era assim tão parte das atividades. Não como deveria ser. Nem mesmo na academia ela é respeitada direito (seus tempos, prazos, maturação, etc.). Então pensando na minha “carreira” como escritora, eu batalho cada minutinho de escrita sem interrupções, sem fragmentação, sem desatenção. E isso nunca deixou de me trazer angústia. A Virginia Woolf fala de algo assim… de como as romancistas mais antigas tinham de escrever no meio da sala, com todo mundo ao redor, no meio do redemoinho. Aquela cena linda do cara trancafiado numa biblioteca, com boa luz, boa mesa, uma máquina de datilografar, um cigarro e silêncio… só em filmes mesmo. Talvez na vida real role para uns e outros. Mas minha semana de trabalho é caótica para a escrita (a poesia, a prosa, a redação técnica). Eu preciso ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo justamente porque eles vão tendo de ser executados do jeito que dá. Se eu for esperar um acabar para começar outro… não sai nenhum. Então vou trabalhando com o olho no calendário, mas sempre a curtos intervalos. Não consigo garantir nada para amanhã e nem nada para daqui a muito tempo. Eu adoraria ter uma semana organizada, com tardes e noites inteiras para escrever sem tropeços ou com maior respeito das pessoas de contato mais direto, mas não é para agora. O que temos para hoje é muita interrupção, muito calor, muita tarefa burocrática urgente e muita persistência.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Decidi me dedicar à escrita bem nova. Tomei todas as decisões grandes da minha vida pensando nisso. Tudo. Não tomei nenhuma decisão que pudesse me afastar ainda mais da escrita. O que me motiva é antes algo interno. Alguma necessidade de me expressar que talvez tenha a ver com a sobrevivência, com a loucura, com a angústia constante, com uma raiva domesticada. Algo assim. Talvez eu escreva para não pensar demais no sem sentido. Se eu pensar em motivações externas, talvez desista. Não quero ser ingrata nem injusta com as coisas maravilhosas que já me aconteceram nesta batalha (publicar alguns livros, ser lida, ser comprada por programas amplos, participar de certas obras, publicar por uma ou outra casa editorial que admiro muito, etc.). No entanto, a proporção de desgastes, decepções, demoras, desvalorizações, apagamentos, “esquecimentos”, exclusões é maior e incomodaria mais, se eu não tivesse uma motivação tão interna e tão sincera.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Talvez eu tenha um estilo próprio. Hoje. Infelizmente, li muito menos autoras do que autores, como deve ter ocorrido à maioria de nós, em especial para gerações como a minha e anteriores. Então é difícil dizer sobre a influência de mulheres na minha literatura. É claro que as li, mas com atraso e em menor proporção. Se cheguei a um estilo (e nem sei dizer se cheguei), foi porque escrevi incessantemente, escrevi insistentemente, escrevi a despeito de tudo e achei um jeito de me expressar que parece aos outros algo de peculiar. Mas noto que esse tal estilo, se existe, agrada e desagrada. Já ouvi dizerem que minha poesia, por exemplo, é violenta demais, em tom de reprovação. Então veja que parece algo que eu deveria, como mulher, ajustar. Enfim… das pressões externas e das respostas que podemos dar.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Vou recomendar livros que li mais recentemente. É claro que eu poderia me preocupar com clássicos ou com uma bibliografia que não me traga problemas nas redes sociais, mas quero apenas dizer de três livros e autores/as que me trouxeram bons momentos com suas literaturas, recentemente:
Outros cantos, da Maria Valéria Rezende, é um romance poderoso, envolvente, que guarda, a um só tempo, mistério e coragem. Escrevi sobre aqui.
Estive em Lisboa e lembrei de você, do Luiz Ruffato, é um romance breve, numa linguagem rápida, até ríspida. Tem muito de mineirês e um humor pontual que me agrada muito. Inteligente e bem sacado. E nem é dos livros mais comentados do autor.
A idade do serrote, do Murilo Mendes, demorou a cair no meu colo. Fez estrago. A um só tempo leve e incisivo. Dei boas risadas. Tem uns e umas figuras que deviam ser mais lembrados/as. Obviamente.