Ana Elisa Ribeiro é escritora e pesquisadora, autora de “Dicionário de Imprecisões”.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Geralmente tenho vários projetos ao mesmo tempo porque eles são de tipos diferentes. Por exemplo: em 2020, estive envolvida com a produção cuidadosa e lenta de um livro juvenil, uma espécie de adaptação, por uma editora comercial daqui de BH pela qual publico algumas coisas para esse público. Isso me exigia determinada energia. Mas enquanto isso, eu também produzia um livro técnico-teórico novo na área da Linguística Aplicada, o que demanda outras energias e saberes diferentes. É uma reunião de artigos, alguns inéditos até então, daí é como se eu virasse algumas chaves para produzir coisas diferentes, sobre temas diversos, por editoras também diversas. Publiquei um ensaio pela Zazie, o que demandou outro tipo de escrita e diálogo. E assim vou fazendo. Se eu tivesse de me concentrar apenas em um projeto… talvez não fizesse nada. De todo modo, jamais tive oportunidade profissional de me dedicar a algo com exclusividade. É sempre tudo precário, corrido, até meio escondido, atravessando a nado na contracorrente. É assim que me sinto. Então o jeito é nadar com força e pegar um “jacaré”, de vez em quando. É uma espécie de rebeldia escrever tanto. Minha semana de trabalho pode ser considerada meio insana por alguns/algumas, mas essas pessoas geralmente são as que se preocupam com os cabrestos. Eu tento dividir minhas energias conforme um planejamento escrito que mora aqui do meu lado, numa mesinha baixa, onde anoto tudo por ordem de prioridade. Procuro dimensionar os tempos, prazos, esforços e não reclamar muito. É, afinal, escrever o que quero fazer. As outras tarefas eu tento deixar na órbita, mas não centralizadas e não absorvendo minhas melhores energias.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Depende do projeto. Na verdade, é ele que manda. Se é uma adaptação de um livro para um público juvenil, isso já tem uma base, que é o texto a ser adaptado. Se é um livro de poemas, preciso ver se se trata de uma reunião de poemas já escritos que preciso selecionar, recolher, dar liga ou se é um projeto já com uma cara mais definida, como foi o caso dos meus dois poemários mais recentes, o Álbum (Relicário, 2018) e o Dicionário de Imprecisões (Impressões de Minas, 2019). O primeiro foi todo inspirado nos álbuns de fotografias da minha família; o segundo, em verbetes de um dicionário imaginário. Já tinham de onde partir. Isso é uma espécie de planta baixa, de arquitetura do livro, pensada de antemão. Se for um conto para uma coletânea, costuma também já vir meio encomendado, ao menos com o tema. Daí me ponho a pensar sobre o que quero escrever, de onde tirarei as ideias do conteúdo e da forma, embora a forma seja algo que pode ir se fazendo quando ponho a mão na massa ou no teclado do computador. Creio que tem sido mais difícil achar finais, últimas frases, do que encontrar inícios. Não sofro daquela trava para começar. Isso nunca foi o problema maior. O fechamento é que me incomoda porque exijo mais dele, acho. No conto que escrevi em 2020 para a coletânea 20 contos sobre a pandemia de 2020 (Autêntica/Academia Mineira de Letras), demorei a achar o encerramento e eu queria que ele fosse meio apoteótico. Alguns retornos me alegraram.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Quem me dera uma rotina de escrita, dedicada! Preciso de silêncio sim, embora isso seja difícil numa casa de esquina. Preciso do meu computador, da minha cadeira, do meu escritório, da minha casa e de que as pessoas me esqueçam ali. É claro que se um dia eu me encontrar numa situação completamente diferente, terei de me adaptar. Não creio que a escrita seja tão suscetível assim ao ambiente, se o desejo de escrever for maior. Mas se posso escolher, é assim que eu prefiro. Não escrevo quase nada fora de casa, em outras circunstâncias. O mais fundamental para mim, em especial para textos longos, é que não me interrompam o tempo todo. Os chamamentos, a cobrança por atenção, etc. acabam me fazendo desistir, e isso imediatamente me deixa infeliz e ansiosa.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travada?
Procrastino pouco e raramente me sinto travada quando a tarefa é escrever. Não reclamo disso. Geralmente sofro do contrário: da ansiedade enorme para começar e recomeçar o texto; da dificuldade de encontrar horário em que possa me sentar diante do PC e escrever, começar, continuar ou terminar um trabalho. Não distingo semana e fim de semana, feriado e férias. Se eu estiver a fim de escrever algo, é meu maior prazer. Só que há sempre algo a me chamar fora disso e eu preciso atender. Sou responsável, claro. Portanto, não sobra tempo para procrastinar e nem para travamentos. Se eu sentir que está difícil, parto para outra atividade e depois retomo a anterior. Sei que é uma espécie de ciclo. É preciso respeitar.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Deu muito trabalho escrever o ensaio Subnarradas: mulheres que editam, publicado pela Zazie Edições, sobre mulheres editoras no Brasil, tema de minha pesquisa atual. Li bastante, sempre com a sensação de ser insuficiente; escrevi parágrafos soltos; anotei muito; inseri muita coisa e apaguei muito. Sabia que estava lidando com uma editora cuidadosa, exigente, leitora de verdade, como é a Laura Erber, então quis fazer algo que não me envergonhasse. O texto ia e voltava e as margens se enchiam do nosso diálogo, por semanas, meses. Até que ela disse que estava OK e o livro saiu. Foi uma alegria. Gosto de ter feito o Dicionário de Imprecisões também pela mesma razão que me agrada ter feito O e-mail de Caminha, livro juvenil: foi divertido.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém uma leitora ideal em mente enquanto escreve?
Não sei se tenho um/a leitor/a ideal… acho que não penso nisso assim vetorialmente. O tema às vezes vem de uma observação qualquer, de uma leitura, uma anotação. Outro dia, publiquei uma crônica no jornal Rascunho cuja ideia veio de uma conversa do meu pai numa chamada de vídeo com meus tios. Essas coisas vão ficando guardadas numa espécie de arquivo que minha cabeça tem, um arquivo muito dinâmico e animado, que me fornece elementos para a escrita. No que vai dar depois eu nunca sei. Pode ser um poema, um conto, uma crônica, um ensaio… Houve livros com temas, outros, não. Um poemário desses que a gente constrói ao longo de anos não tem propriamente um tema. Ou pode ter, como é o caso do Álbum.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Eu não mostro muito meus rascunhos. Até hoje não acho que seja fácil ter interlocutores/as. Se eu me sentir segura com um texto, vou dialogar diretamente com o editor ou a editora. Se achar que preciso de mais e antes, procuro algum/a colega de confiança, leitor ou leitora contumaz, escritor ou escritora. Geralmente, meu namorado lê alguns textos primeiro. O Sérgio Karam é tradutor, leitor experiente, expert em literatura, em especial prosa. É alguém em quem confio. Para o conto sobre a pandemia, pedi uma leitura da Adriane Garcia, poeta maravilhosa, amiga, leitora arguta. Depois recebi retornos sobre esse conto já publicado e descobri mais uma ou duas pessoas que poderiam ler minha prosa antes de ela ser lançada por aí. Não gosto de expor poemas antes do tempo. Mas na maioria das vezes é o editor ou a editora quem lê primeiro. Sou permeável a críticas, ao mesmo tempo que sei me defender delas, acho.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Foi cedo, ainda em fase escolar, que descobri o imenso prazer mental e corporal que eu sentia ao escrever, por escrever, apenas escrever, mas também, depois, por publicar. Ganhei um diário quando tinha uns 10 ou 11 anos, quando estava ali pela quinta série. Virou meu espaço de escrita sem vergonha. Não mostrei a ninguém. Escrevi nas últimas páginas de cadernos. Depois fui juntando, batendo a máquina, me sentia ótima ouvindo aquele barulho das teclas pesadas. Tinha muita vontade de ter um livro, dois. Mandava encadernar para me aproximar dessa sensação. Então considero assim: descobri o prazer de ler textos literários bem criança, na escola; depois descobri o prazer de escrever na escola e no diário ganhado de uma tia; depois, aos 17 ou 18 anos, tive uns poemas publicados e achei prazeroso; depois segui, segui e segui. É pulsão, né? Deve ser. Só sei que não é dispensável e nem desprezível. Guiou a maior parte das minhas escolhas na vida. Resolvi me dedicar intimamente à escrita ainda adolescente. Ali pelos vinte e poucos anos, decidi que minha profissão teria forte relação com a escrita também. Mas não me adianta apenas falar dela, dizer, explicar, ensinar. Isso não me alimentaria. Eu preciso de tempo para escrever efetivamente, ser escritora. É um grande conflito, uma dificuldade quase intransponível, neste momento. Ninguém me disse como seria a vida de escritora. Ninguém ao meu redor poderia dizer nada porque fui conhecer gente que escrevia profissionalmente já adulta. Nada ao meu redor indicava essa possibilidade. No entanto, esse isolamento relativo também evitou que eu ouvisse bobagens, gente frustrada, gente excessivamente competitiva, etc. Talvez tenha sido interessante andar na ignorância em busca de algo que eu apenas desejava muito. Não tive medo do que não sabia direito como era. Não tive medos. Eu gostaria, talvez, que tivessem dito algo sobre a prosa e a poesia… às vezes acho que apostei fichas demais no lugar errado. Mas não sei se daria para confiar em quem dissesse. Acabei de reler agora O poeta de Pondichéry, da poeta portuguesa Adília Lopes, recém-lançado pela editora Moinhos, do meu amigo Nathan Magalhães. Ri bastante do livro porque há um personagem que vive às voltas com um crítico, alguém que lhe interdita a escrita o tempo todo… Tentei não ter isso na vida, ao menos não antes de tentar. Outro dia um conhecido detonou um poema meu numa rede social. Uma pessoa que gosta do poema o postou e o colega foi lá dizer que era ruim e deveria voltar para a gaveta. Respondi que era tarde demais, pois o tal poema já estava num livro de 2015. E ironizei: “da próxima vez venho te pedir a bênção”. Há qualquer coisa assim no meio literário e é preciso formar certos escudos contra uma interlocução que nos poderia silenciar. É claro que evito maus poemas, evito mostrá-los. Evito escrevê-los! Mas a gente não consegue. Nem quem é mais badalado/a consegue escapar aos poemas fracos. E nem por isso está tudo guardado ou escondido.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Não sei se o estilo próprio foi uma busca consciente. A leitora do meu primeiro livro foi uma poeta e crítica importante, a Laís Corrêa de Araújo. Ela foi honestíssima e anotou um por um dos textos que eu queria publicar. Segui muito do que ela disse. Mas houve um direcionamento dela que eu não segui porque identifiquei como algo que fazia parte da minha dicção: ironia, humor. Ela não gostava. Eu não via como excluir isso do meu modo de dizer e de escrever. Mantive. E é algo que se nota nos livros de poesia todos que publiquei. Sei que li muita poesia e me senti influenciada por Paulo Leminski, por exemplo. Sempre disse isso por aí. Não consigo dizer sobre influências femininas, infelizmente, porque li poucas mulheres na minha formação. É estrutural, como sabemos. A gente demora demais a tomar ciência de algumas coisas. Hoje leio muitas mulheres, hoje elas publicam mais e aparecem mais.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Falo em livros de vez em quando, em especial quando eles me disparam uma vontade de escrever resenhas. Há anos venho apostando em resenhas, embora eu não seja crítica literária e nem o deseje ser. Me sinto no direito apenas de dizer que gostei, de fazer uma recomendação, uma propaganda espontânea. Fiz algumas recomendações no Digestivo Cultural, onde escrevo há 18 anos. De vez em quando, escrevo algo para o nosso maior jornal aqui, o Estado de Minas. As resenhas que estão para sair são dos livros do Santiago Amigorena, O gueto interior, pela Todavia (trad. Rosa Freide d’Aguiar), e O quarto alemão, da Carla Maliandi, pela Moinhos (trad. Sérgio Karam). Os dois são traduções de autores argentinos. Li também Caderno de memórias coloniais, da Isabela Figueiredo, pela Todavia, e fiquei muito impressionada. Os três livros têm algo difuso em comum… algo que tem sido muito discursivizado como literatura: a violência, os deslocamentos humanos, o desterro, os retornos forçados, o patriarcado e sua violência incessante, as assimetrias incontornáveis. Tenho recomendando livros desse tipo.