Ana Cláudia Romano Ribeiro é escritora, pesquisadora e tradutora, autora de “Ave, semente” (Editacuja, 2021).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Cumprimento minha esposa. Cumprimento as plantas. Cumprimento os animais.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho hora preferida para a escrita (de poesia) – não tenho hora preferida para nada, inclusive gosto de variar e entendi que preciso disso. É tão bom quando a vida permite isso – tantas vezes é meu ganha-pão que decide meu tempo. Quando posso, trabalho com e sem hora marcada. Acabo variando quando posso porque tenho uma relação contraditória com rotinas: gosto e não gosto. Gosto por um tempo, mas não por tempo demais.
De modo geral, não tenho um ritual preparatório para escrever, além de deixar o botão da presença e da atenção ligado para considerar o que for para considerar, dentro e fora. Atualmente meu ritual para escrever é parar para escrever. Separar esse tempo na moita semovente do dia, abrir picadas na agenda, perder o medo da determinação e da exposição.
De modo específico, os encontros semanais com as Anáguas são um ritual propiciatório para a escrita. As Anáguas são um grupo que se reúne uma vez por semana sob a batuta do Ismar (Tirelli Neto), que escolhe textos, temas e visadas – é a melhor aula de literatura que já vi, porque a gente passeia dentro dos textos. Desse grupo participam também a Consuelo Lins, a Katia Maciel, a Livia Flores e o Rodrigo Moretti. A gente lê junto, conversa e, a partir de uma ou mais questões surgidas das leituras ou trazidas pelo Ismar, a gente escreve separado; depois voltamos para ouvir o que cada um dos seis fez e escarafunchamos junto. É uma minivida e a gente ri muito. Esse exercício de ler coisa dos outros e coisa própria, de ser lida, se colocar em outras perspectivas temáticas, estilísticas, etc., é muito anti-estagnante. Cria pororocas ótimas e ajuda a ouvir melhor.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende do grau de caos e distração, depende de estar trabalhando num projeto específico, depende se combinei prazos (comigo mesma ou com outros), de como me viro com as demandas variadas (com aquelas que são o preço de alguma autonomia e com as outras – sempre um monte). Às vezes escrevo todos os dias, às vezes escrevo espalhadamente. Minha meta é escrever. É assim que eu penso melhor.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não é difícil começar, mas há muito retrabalho às vezes. Às vezes não. (Muitas vezes a melhor foto que eu tiro é a primeira, tirada sem pensar muito, de uma série de várias tentativas de captar um enquadramento afinado com um clima que me interessa.) Tomo notas que não necessariamente releio depois, perco um tanto, esqueço, retomo. Muitas vezes as formulações aparecem prontas na minha cabeça.
Até aqui me referi à escrita de poesia, que se tornou regular aos meus 46 anos, mas outros tipos também fazem parte das minhas horas: a tradução, a escrita acadêmica e a escrita ensaística.
A tradução é um tipo de escrita muito peculiar, de que gosto muito, mesmo quando não encontro o que queria encontrar. Gosto do processo de calçar chinelas alheias, de reescrever com restrições – variadas e específicas a cada texto ou a cada projeto tradutório. O último livro que traduzi foi Poteaux d’angle, do Henri Michaux. Gosto muito de coisas que me acontecem enquanto traduzo, por exemplo, gargalhar de repente quando surge uma solução que parece boa (“surge” pode ser uma coisa rápida ou pode ser resultado de uma longa e por vezes desesperada busca que dura meses, anos). Outra coisa interessante que me acontece quando estou relendo uma tradução que fiz é que às vezes empaco e para tudo; nem me dou conta direito do que está acontecendo. Depois de um tempo entendi que isso acontece quando há algum problema na tradução de que não me dou conta de modo explicitamente formulado. É um tempo suspenso. Só saio dele quando consigo enxergar no escuro, quando sai uma tradução mais adequada ou mais legal. É realmente estranho. Essas coisas me aconteceram várias vezes enquanto traduzia a Utopia do Thomas More (comecei em 2013 e terminei a última revisão em janeiro de 2020, com inúmeras [e por vezes desesperadoras] interrupções).
A escrita de textos acadêmicos é, para mim, um processo bem quadradinho. Nasce de leituras de textos especializados, que tratam do assunto escolhido. A partir da leitura vou pensando num caminho de raciocínio e escrevo em diálogo com esses textos, mantendo-me protegida por trás do biombo das referências bibliográficas, de certa impessoalidade, de certo desespero face a tudo o que não consegui ler.
O último tipo de escrita, estritamente falando (porque eu poderia falar do desenho como escrita, mas aí talvez já seja outro assunto), é o ensaio, mais livre, mais arredondado e mais colorido que um texto acadêmico. Comecei há pouco tempo a experimentar esse tipo de escrita (o último foi um verbete sobre utopia que está na escamandro).
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Atualmente eu simplesmente escrevo. Escrita puxa escrita. Antes, eu sempre quis escrever regularmente, mas fiquei sem escrever por mais de 40 anos e lidei (não lidei, melhor dizendo, porque não sabia como lidar), na verdade convivi com uma imensa ansiedade, uma timidez canhestra e decorrente frustração. Passei a maior parte da vida usando sapatos um número menor e roupas ou apertadas demais ou largas demais. No fim das contas, depois de um longo processo, consegui ouvir e distinguir melhor as vozes (a minha, as outras), os silêncios, resolver o problema da numeração dos sapatos e das roupas, da procrastinação, do medo do olhar alheio e da ansiedade, assumir a vontade de escrever e soltar o freio de mão. Afinal, já passei da metade da minha vida. Não tenho tempo para adiar mais nada.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Releio muitas vezes. Às vezes para mudar nada, às vezes para mudar tudo ou um trecho, às vezes para apagar. Depende do que consigo enxergar e do que quero. Mostro para pouca gente. Tenho receio de tomar o tempo alheio, mas também gosto de ouvir pitacos, ainda mais quando partem de uma escuta aberta. Fico atenta para não me trair. Hoje em dia as pessoas para quem mais mostro meus poemas são a Deise e as Anáguas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo no computador, escrevo a mão, a lápis, a caneta, em folhas brancas soltas, às vezes blocos de folhas brancas. Pautas sempre me atrapalharam. Aprendi a mandar mensagens para mim mesma. Só falta me organizar para lembrar de ouvi-las e fazer alguma coisa com elas.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Acho que as minhas ideias vêm de todos os lugares, de dentro e de fora. Acho que criar uma coisa tem a ver com manter um canal aberto para não entupir o cordão umbilical que vai de si para si, consigo, por onde passam e pulsam os índices da mais singular esquisitice, da sem-graceira, da poeira e da estrela. E, claro, tem a ver com ler e estudar incessantemente, comer muito feijão, um pé no chão, outro na copa da árvore, outro na nuvem, outro fincado no centro da terra, outro no escritório, outro errando e se distraindo a esmo. As ideias vêm dos pés. As ideias vêm das mãos. A Deise (minha esposa) certamente é um estímulo, porque estando com ela eu posso ser quem eu sou e ela, quem ela é. E ela renomeia as coisas sem querer ou por querer com uma frequência muito grande: isso refresca olhos e ouvidos. A gente ri muito, o que me parece favorecer as ideias porque desentope as vias. Viver reciprocidades lima a vontade da expressão.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou o fato de eu conseguir juntar pontas esparsas, quem eu queria ser com quem eu sou (não tem mais “who you are and who you want to be are competing at opposite ends”, como diz aquela canção do Joseph Arthur, Bottle of you), juntar o que eu quero com o que dá para fazer. Se eu pudesse voltar aos inícios diria a mim mesma para não ter medo de experimentar, mesmo que seja para jogar tudo fora depois. Diria para não me alhear de mim mesma, acontecesse o que acontecesse. Se isso acontecesse, que não demorasse para voltar. Não me distraísse tanto com opiniões dos outros. Que permanecesse no silêncio. Que desse um jeito na timidez. Que tivesse disciplina para desenvolver um projeto de escrita do começo ao fim. Mas não ia dar certo porque eu não sabia o que era bobagem e o que não era e me dissipava. O bom de envelhecer é que a gente acaba se situando melhor. Algumas bobagens diminuem, o riso aumenta, a noção da finitude dá aquela enquadrada nos começos, nos meios e nos fins.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Pensando na minha profissão de professora de literaturas de língua francesa, queria muito uma antologia de literatura de língua francesa organizada sob o signo da paridade de gênero, cor e geografia. Queria que ela fosse bilíngue – ou mais que bilíngue, multilíngue, se for o caso, considerando que o francês muitas vezes convive com outras línguas, autóctones, nos textos literários e na vida empírica. Todas as antologias de literatura francesa que eu pude consultar até hoje trazem uma maioria esmagadora de autores que são homens cis, brancos e franceses; às vezes, uma ou outra autora aparece aqui e ali. Seria muito bom alargar todos os horizontes e trazer à vista o que está escondido. Tenho preparado meus cursos com isso em mente.
Também queria antologias assim em outras línguas, sempre bilíngues ou multilíngues e com muitas notas, introduções legais, posfácios também.
Enquanto amante fosforilante de fac-símiles, gostaria que houvesse mais deles, fac-símiles de cadernos de anotações de gente que se dedica de muitos modos à criação de coisas variadas, cheios de desenhos e palavras.
E, claro, quero continuar a publicar minhas coisas: livros de poemas, livros sonoros, desenhados, ilustrados ou só com desenhos, novelas gráficas, fotografias, traduções, ensaios, etc. – sozinha e em parceria. Ainda vou escrever um “romance desenhado” como os do Dany Laferrière, que me empolgam na medula.