Aline Cardoso é bruxa mãe solo, professora, mestra, escritora e editora independente.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
O meu dia sempre começa antes que o despertador possa tocar. Tenho a sensação de que estou sempre atrasada, correndo eternamente atrás do relógio, descompassada. Sou professora, editora, e mãe solo de Marina, então, a minha rotina matinal diária envolve os cuidados com ela. Antes e depois da quarentena, sempre levanto antes que ela acorde, apronto tudo religiosamente para iniciar as aulas. Meus dias começam com muito trabalho, seja ele maternal ou escolar (ao vivo, ou à distância). A rotina é bastante pesada. Sinto muita dificuldade em conciliar tudo o que gostaria de fazer, tenho a necessidade de fazer milhares de coisas ao mesmo tempo. Tento não me deixar soterrar pelas obrigações do dia para poder sair da cama e enfrentar tudo, os dias pela manhã são quase um loop.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu sou uma criatura de hábitos noturnos. Sempre tive insônia e ocupo minhas noites com atividades que me aliviem as tensões psíquicas acumuladas ao longo do dia. Procuro pintar aquarela, ouvir música, desenhar e escrever. Não há rituais para o meu processo de escrita, por isso sempre anoto os gatilhos imagético-sensoriais que me atingem ao longo do dia. Sempre tenho vários cadernos espalhados pela casa, e até mesmo o celular também serve para guardar a centelha de um poema. Se puder chamar isso de ritual, então, o meu ritual para a escrita parte primeiro da caçada e da compilação de múltiplas sinapses.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu nunca tive uma rotina rigorosa com a escrita, nunca pude me dedicar integralmente a esse meu “lugar de ser inútil” como diria Manoel de Barros. O trabalho formal sempre consome a maior parte do meu dia e da minha energia criativa, é preciso cumprir prazos e compromissos que assegurem a nossa sobrevivência, pois sou assalariada e chefe de família, como a maior parte das mulheres negras deste país. Escrever é uma pulsão de vida, uma necessidade que a minha própria inclinação para as letras me provoca e instiga. Sempre que passo longos períodos distante dos cadernos sinto-me pesada demais ou entalada. Sinto que o poema sempre se anuncia e precipita daquelas caçadas anteriores. Não estabeleço metas rígidas para cumprir, mas gostaria de conseguir produzir um livro por ano.
Recentemente fui desafiada por um amigo que é poeta marginal, o Filosofino, a escrever durante trinta dias uma poesia para compartilhar no instagram. Bem, eu já estourei o prazo obviamente, mas amei a proposta de tentar reservar alguma energia vital para a minha produção. Em Mulheres que correm com os lobos Clarissa Pinkola Éstes nos conta sobre essa triste realidade, uma vez que em meio às milhares de cobranças formais os momentos para desenvolver as nossas capacidades artísticas findam por parecerem momentos roubados de nós mesmas. Estar nesse desafio: #30dias30poesias fez com que eu me interessasse também pela construção de um acompanhamento para o texto, comecei a experimentar montar beats para acompanhar a leitura dos textos. Fiquei muito feliz com os resultados que obtive até aqui e pretendo compilar tudo em mais uma obra, espero que o mais breve possível. Escrever para mim sempre foi um hábito que cultivo desde criança. Eu gostava de escrever cartas, diários, cadernos de poesias, músicas… escrevi o meu primeiro livro à mão, em um caderno, aos 16 anos, trata-se de uma novela de terror. Contudo, sempre que me sinto deprimida, escrevo. Quando sinto que não consigo elaborar fatos do meu cotidiano, recorro aos cadernos e escrevo. Como diria Ana Cristina César, são os meus “cadernos terapêuticos”.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Ferreira Gullar explica muito bem o que sinto com a relação entre as notas, as pesquisas para a escrita e as poesias em si. A pesquisa é parte do processo, mas dominar apenas o conhecimento no qual os versos são embebidos, não basta. É preciso ter a verve do poema correndo pelo corpo inteiro, misturada ao meu próprio sangue. Quando a verve realiza trocas com a minha energia criadora, o poema é dequitado no papel. Assim como a placenta, que é um órgão criado exclusivamente para suprir as necessidades do feto, a verve de cada poema que escrevo precisa ser gerada e amadurecida para que o poema possa nascer. E assim, para que cada leitor geste em si as compreensões responsivo-ativas suscitadas por cada obra. Alguns poemas exigem mais lapidação do que outros que, por vezes, nascem praticamente cristalinos. Como diria Foucault, há de fato acontecimentos que fazem com que certos enunciados irrompam e reverberem. Percebo que cada poema é fruto do acúmulo, da seleção e do aprofundamento em referências verbovocovisuais que materializo através das palavras, que sempre parecem estar vivas dentro de mim, como se fossem de fato parte do meu ser, pulsantes.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Deixo que as travas se dissolvam por si mesmas na pulsão que sempre tive pela escrita. Enquanto mulher negra, escrever e ser considerada escritora sempre foram lugares distantes para mim e só começaram a deixar de ser há pouco tempo. Se quatro anos atrás alguém me dissesse que eu estaria respondendo a esta entrevista hoje eu jamais acreditaria. Sentia-me incapaz de escrever, compartilhar e obter o interesse dos leitores. Como se o que eu tivesse para dizer através da minha escrita não fosse necessário, tivesse valor ou possuísse a mínima importância no mundo. Enfrentar a mim mesma sempre foi a minha mais difícil tarefa, pois só depois de confrontas os meus demônios pude enfrentar o mundo e a realidade que, na verdade, me oprime e me fazia desacreditar de todo o meu potencial realizador.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Como gosto de escrever à mão, volto aos textos diversas vezes antes de sentir que eles estão como eu gostaria. Deixo que eles fermentem, lentamente. Quando começo a passar a seleção para o computador faço mais alterações e revisões, não sei quantas, mas é certo que são muitas. Gosto de mostrar aos meus amigos e de publicar algumas versões no meu perfil do Instagram e de perceber a primeira recepção feitas pelos leitores.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Faço primeiro os manuscritos, guardo os originais, passo para o computador, imprimo para fazer outras revisões e também guardo essa primeira versão rabiscada. Gosto de ver a evolução dos textos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias vêm de vários gatilhos que vão desde a minha própria realidade, perpassam os sonhos, os acontecimentos do cotidiano, busco ver as centelhas da poesia no mundo, captá-las e trazê-las para arder nos poemas. Tenho o hábito natural de observar muito o mundo ao meu redor, aguçar os meus sentidos e memórias, não existe um conjunto dogmático de hábitos que sigo para ser criativa. Sou introspectiva. Às vezes escrevo mais e noutras menos, não penso muito nisso, apenas deixo a poesia me encontrar.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Os hábitos de escrever os manuscritos ainda são os mesmos, eu me diria para organizar um arquivo digital de tudo o que já fiz. Sobretudo, diria a mim mesma para acreditar no que eu sinto quando escrevo, sem ter medo do que os outros dirão ou pensarão a respeito das obras. Apenas escrever e buscar sair das gavetas o quanto antes. Às vezes acho que saí tarde demais, às vezes acho que foi no tempo que havia de ser, não sei. Mas o que importa é que saí da gaveta, eu me diria para ser valente, ter fé na palavra, na poesia e na vida.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de escrever um livro com contos de terror com base nos meus sonhos lúcidos, ainda não consegui centrar e organizar, mas acredito que ele virá. Gostaria de ler todos os livros das mulheres negras mães solo silenciadas e sufocadas pele sistema, assim como eu. E eu sei que essas obras já existem, precisamos procurar e também abrir espaços para que elas venham a se tornar materialidade, ou seja, criar a oportunidade para mais escritoras saírem das gavetas e permitirem que os seus escritos possam tomar a forma de livro.