Alexandre Staut é escritor, roteirista e editor, autor de O incêndio (2018).

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Quando estou escrevendo um livro, trabalho todas as manhãs de segunda a sexta-feira. De manhã, a luz é inspiradora, estou imerso no mundo onírico e o censor interno ainda não está totalmente desperto. Meu censor é cruel. Ele me diz, vez ou outra: “Por que escrever mais um livro? Ficção? Pior ainda! Há coisas mais urgentes no mundo, principalmente, agora, durante a pandemia. Sai da frente do computador e vai fazer trabalho voluntário.” Mas eu resisto a esses pensamentos.
Faço um livro de cada vez. Escrever literatura dá trabalho. Mas quando encontro a frase certa, um caminho a percorrer, sinto um prazer que igualaria a uma viagem de ácido ou MDMA, ou então à shavasana, da ioga. Depois, me sinto exausto, como a gente fica quando o efeito de uma droga passa. A serotonina fica lá no chão pedindo socorro (risos).
Falando em drogas, preciso estar totalmente afinado comigo mesmo, no meu eixo, para trabalhar. Escrever bêbado, de ressaca, ou até com drogas leves, para mim, é um desastre.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Já fiz outline, já deixei fluir, trabalhei de todas as formas possíveis na escrita dos oito livros que escrevi até o momento (dois inéditos, um deles, Banquete indígena e outras histórias da gastronomia brasileira, será lançado no fim do ano pela editora de áudio-books sueca Storytel em formato de série com oito episódios). Gosto mesmo é deixar uma história amadurecer algum tempo; aí eu me sento e escrevo sem parar. Assim aconteceu com Paris-Brest, meu único livro que fez sucesso até agora. No caso dessa obra, após a experiência de viver por quase quatro anos na França, precisei de um distanciamento de dez anos para que a história aparecesse com começo, meio e fim. Foi impressionante. Eu sabia o tom que devia usar, a voz do narrador apareceu claramente.
O mais difícil é a primeira frase, sempre. É com ela um autor fisga (ou não) o leitor para dentro de um livro. Tenho uma página de word em que transcrevo primeiras frases de livros que amei. São muitas. Esse exercício me inspira bastante.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Começo sempre depois de um café, numa mesa de trabalho voltada para uma parede com minhas pinturas. Não que elas me inspirem. A pintura na minha vida é outro departamento. Abro o computador, leio o parágrafo que escrevi no dia anterior, e começo a digitar, sempre tendo ao lado uma garrafa de café e os gatos, além de balas de nicotina (parei de fumar na pandemia). Os gatos inspiram, são sensitivos.
Houve um livro que comecei, já tinha 40 mil toques. Saí do computador por uns segundos e vi quando Emília, minha gata mais velha, passou por cima do teclado e, com uma única pata, delicadamente, apagou absolutamente tudo, deixando um ponto de interrogação na página em branco. Fiquei besta. Claro que eu tinha o backup desse livro, mas resolvi não continuar. Ele foi para o lixo.
Silêncio sempre é primordial. Há um prédio horroroso sendo construído quase que dentro da sala da minha casa. Tenho vontade de jogar uma bomba pela janela. Quando o barulho está infernal uso silicone nas orelhas, mas isso me atrapalha. Quem escreve usa todos os sentidos na hora de criar. Sem a audição, parece que falta algo.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Eu me cobro muito, às vezes de uma forma desumana. Só falta chicotinho. Quando estou criando, o mundo pode desabar, que eu vou escrever. Quando me sinto travado, fecho ao arquivo, vou fazer as vezes de dono de casa, brinco com os gatos. Antes enrolava dez cigarros de tabaco e fumava um atrás do outro, no sofá, deixando o pensamento solto por aí. Hoje eu caminho pelo bairro. Caminhadas são muito legais para se resolver cenas de livros, vozes de personagens, encontrar frases.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Todos deram bastante trabalho. Paris-Brest foi escrito em seis meses, mas precisei esperar dez anos até a história “descer”. Só a coloquei no papel quando senti que estava maduro o suficiente para transformá-la em livro. É meu orgulho. Foi lançado em 2016 e, até hoje, de duas a quatro vezes por semana, recebo mensagens de leitores. Para escrever Banquete indígena percorri o Brasil quase inteiro recolhendo histórias ligadas à alimentação ou à falta dela. Foi fascinante e também trabalhoso escrever 400 mil caracteres. Foi complicado encontrar seu tom. É um livro que traz memórias dos anos em que fui repórter policial do Diário Popular, em São Paulo, uma mistureba de jornalismo literário, de ficção, de antropologia. Há até mesmo uma distopia. O último texto é uma novela que se passa no ano 2222, em Manaus, momento em que fontes de proteínas tradicionais se esgotaram para 99% da população que se vê obrigada a comer formigas, ou seja, o povo volta a uma das fontes de proteínas primordiais dos povos indígenas nacionais.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Parece lugar comum, mas acho que os livros me escolhem. Tentei apagar da memória, por longo tempo, a experiência da vida de cozinheiro na França. Houve alegrias, mas foi dolorido. Eu trabalhava com gastronomia e, num certo momento, cheguei a passar fome, a pegar bituca de cigarro do chão. Houve um dia em que, sem perceber, estava escrevendo essa história. Assim aconteceu com outros livros.
O leitor ideal… quero um que me ame ou então um que eu irrite profundamente (risos).
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Meu primeiro livro, Jazz band na sala da gente (2010), não mostrei para ninguém e me ferrei. Fiz tudo sozinho, uma edição de autor. Eu precisava lançar um livro naquele momento para me sentir escritor. Era uma necessidade interna que tirava meu sono. Depois de lançado, a amiga Rafaela, uma super leitora, disse que o livro precisava de uma “direção de arte”. Passei mais de seis meses pensando em que exatamente era a direção de arte de um livro, até sacar que o romance não passara por um preparador, um editor. Depois disso passei a respeitar profundamente todas as pessoas que trabalham na criação de um livro, do agente ao vendedor da loja. Inclusive acabei virando editor (da Folhas de Relva Edições), ofício que aprendi na Companhia Editora Nacional. Descobri que adoro editar, meus livros e dos outros.
Respondendo a outra pergunta… Desde Paris-Brest (2016) meus originais vão para as mãos da Luciana Villas-Boas e da Anna Luiza Cardoso, da agência literária Villas-Boas & Moss. Luciana e Anna têm um olhar incrível, uma sensibilidade foda, são duas pessoas que me estimulam imensamente a escrever, a lançar livros.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Foi na quinta série. Rosinha, a professora de literatura, pediu uma redação e eu não sabia por onde começar. Ela não gostava de Drummond, por achá-lo ‘baixo’ moralmente. Peguei o poema “O homem, as viagens” e o adaptei para um texto em prosa. Ela gostou tanto que leu em voz alta para a classe toda. Os colegas bateram palmas. A partir dali me senti escritor, passei a frequentar a biblioteca da cidade e a ler bastante; essa história é contada no meu romance O incêndio (2018).
Hoje, quando me lembro da dona Rosinha falar que Drummond era imoral, sou levado a crer que ela pode muito bem ter deixado o autor entre os esquecidos ou malditos para nos causar curiosidade. Até porque ela sempre dizia que a arte não deve ter compromisso com a moral. Na época eu não sabia argumentar, né?
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Acho que sou um autor sem estilo. Ouvi o Patrick Modiano – que me inspira bastante – falar algo parecido quando lançouUn pedigree (Gallimard), bem antes de ganhar o Nobel. Na nota inicial do romance ele diz que escrevera aquelas palavras como se fosse um currículo vitae. Tenho preguiça de autores que se desdobram para inventar um estilo, uma voz. Soa falso. Ou então daqueles que lançam livros parecidos uns com os outros, para criar uma “obra”. Meus seis livros são completamente diferentes entre si sou bem-resolvido quando a isso.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Ultimamente, Cidades sensíveis, volume de contos do dramaturgo Newton Moreno (lançado por mim, pela Folhas de Relva Edições); são histórias que beiram fábulas. Lindo! O outro é Sobre os ossos dos mortos, da polonesa Olga Tokarczuk (editora Todavia), um dos romances mais inteligentes e instigantes que já li. Olga me enganou com sua personagem, me colocou no bolso. Gosto da temática dessa obra, a destruição da natureza, a natureza se vingando do homem.