Alexandre Pilati é poeta, crítico literário e professor de literatura brasileira na UnB.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Em geral não tenho uma rotina fixa. Mas meu dia começa sempre com algum tipo de leitura. Mais comumente leio notícias, entretanto também gosto de ler prosa pela manhã: um romance ou conto. Leio em torno de dez a quinze páginas logo cedo, antes de começar a rotina de trabalho e outros afazeres. Essa leitura matinal é essencial para a minha escrita. É como se eu deixasse palavras e ideias maturando em algum lugar da mente. Com sorte, essas ideias explodem bem. À noite é hora de ler poesia. Esse gênero combina mais com a preparação dos sonhos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Para a escrita da poesia não tenho ritual e, na minha opinião, nem seria possível ter. Costumo dizer que o poeta está sempre escrevendo, mesmo sem papel e caneta ou computador à mão. Nos dias mais inspirados, fico trabalhando palavras, ritmos, imagens dentro da cabeça. Todos esses elementos, se resistirem a um ou dois dias menos inspirados, têm força para voltar e ocupar lugar em algum texto que estou escrevendo a sério.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não consigo ter metas nem rotinas fixas para escrever poesia. Quando estou escrevendo algum outro tipo de texto preciso de muito silêncio e isolamento. Mas a poesia pode acontecer também no meio da maior confusão: no trânsito, no cinema, numa rua movimentada e assim por diante. Aí é preciso estar “armado” para não perder os resultados do trabalho profundo do inconsciente e que assomam, por algum motivo disparador, nos momentos às vezes menos esperados.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Ando sempre anotando coisas. Ou mando para mim mesmo no e-mail, ou anoto num caderno ou agenda. A pesquisa do poeta é a observação da vida, dos detalhes que compõem o dia, sejam detalhes pequenos ou imensos. O canto do sorriso de alguém, as cores de um cão, o barulho do vento, a corrente de um rio… tudo é colhido nesse processo de atenção, do qual, é claro, o protagonismo é das palavras, pois essas são as matérias primas do poeta. O poeta junta os fragmentos do dia e depois os coloca em um outro nível de ordem, capaz de revelar de modo mais intenso a existência de si, dos outros, da natureza ou da transcendência.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tenho muito problema com relação a isso. Quando se trata de poesia, é preciso respeitar o tempo dela. Ela é que definirá o quando e a forma da escrita. O meu processo de escrita tem muito a ver com a superação da tentação da liberdade. Quando minha liberdade de escrever qualquer coisa é superada pela necessidade de dizer algo segundo uma determinada forma, estou confortável com a escrita de um poema. O bom poema não é o que eu posso escrever, mas o que eu não consigo deixar de escrever. A poesia legítima é o reino da necessidade de expressão.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas vezes, mas procurando jamais descaracterizar aquele momento fundamental da criação poética. As várias revisões são necessárias para a preservação desse momento forte, que é o da arte e da composição poética. Às vezes mostro para algumas pessoas e, mais recentemente, comecei a fazer alguns “testes de audiência” nas redes sociais para avaliar o grau de comunicação de um ou outro poema que acho que está mais bem estruturado. Os resultados desses “testes” em geral são muito bons para a reflexão sobre o próprio escrever, pois posso travar contato com quem não conheço e colher dali opiniões interessantes sobre certas soluções compositivas escolhidas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho a impressão de que meus melhores trabalhos foram escritos à mão primeiro. Mas pode ser só uma impressão, advinda da maior intimidade que sinto com textos que passaram pela escrita a lápis ou a caneta. Me divirto mais escrevendo à mão do que no computador. Se pudesse escreveria só a caneta ou a lápis. Mas isso é impossível hoje em dia. Não sou “antitecnologia”, mas me sentiria incompleto como escritor se utilizasse apenas ela para produzir meus textos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho que são as duas coisas que já mencionei acima: atenção aos detalhes do mundo que me rodeia e muita leitura. Na minha opinião, o poeta tem de estar sempre disposto a ampliar o seu repertório, colhendo vivências e palavras num processo que, contraditoriamente, busca uma plenitude que jamais se realiza e da qual o poema, se for bom, é uma expressão possível. Saber ler, anotar, pesquisar, consultar dicionários. Esses processos, realizados com ou sem método, não importa, são as fontes da criatividade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Hoje tenho muito menos ansiedade em concluir os textos do que quando comecei a escrever, com mais regularidade e intenção profissional, no início dos anos 2000. E isso, para mim, é determinante da qualidade dos poemas que escrevo hoje. Quando se é mais jovem, há um compromisso com tornar-se poeta e parte disso significa ser reconhecido como tal. O problema é que para ser reconhecido como tal é necessário escrever um bom tanto de poemas. No balanço geral, quando o autor é jovem, a pressa vem antes da qualidade. Hoje não tenho pressa. Tenho hoje, por exemplo, o projeto de não publicar um novo livro de poemas nos próximos anos. Isso porque penso hoje que preciso de um tempo para renovar e depurar o meu estilo, que percebo que chegou a certos limites expressivos. É preciso agora parar um pouco de publicar, exercitar mais, com mais liberdade, para conquistar novos avanços técnicos e formais. E posso esperar, não preciso hoje em dia publicar muito nem com pressa.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho o projeto de escrever um livro infantil ou infanto-juvenil, que seria uma narrativa ambientada no interior do Brasil, no início do século XX. Estou recolhendo algum material e pretendo dar um desfecho a esse projeto dentro de alguns anos. Mas esse é um grande desafio, porque, talvez até mais do que em outros gêneros literários, neste tipo de texto a poética da expressão tem de estar equilibrada com a sua capacidade de comunicação com o público. Esse é, por enquanto, o livro que eu gostaria de ler, mas que ainda não existe. Para escrever para crianças e jovens é preciso estar disposto a colocar um amor comunicativo na forma do texto, ele precisa integrar-se de modo radical e direto à experiência da leitura, com a simplicidade e a magia de quem apenas abre os olhos pela manhã. Acho que esse projeto irá necessariamente mudar a minha rotina e escrita e minha relação com o fazer literário. Espero que um dia consiga tempo para concluí-lo.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Minha principal atividade de escrita é a poesia. E, no meu caso, o trabalho com a poesia é um processo contínuo, inseparável de todas as outras atividades da vida. Está inscrita, inexoravelmente, no fluir da existência. Ou seja, invento sempre poesia, mesmo quando não estou efetivamente escrevendo, anotando ou registrando algo por escrito. Nesse processo de invenção e registro quase incessante, vão surgindo alguns poemas. Entretanto, ao perceber que um possível livro de poemas está maduro para estruturar-se, procuro redirecionar esse fluxo contínuo segundo especificidades técnicas e temáticas novas, como forma de tentar fazer que um possível próximo livro seja uma superação do anterior. Assim, embora eu tenha uma necessidade geral de escrita de poesia que é contínua, cada livro novo ou possível livro vai se convertendo, aos poucos, em um projeto, que vai tomando corpo à medida que o tempo vai passando e vou podendo avaliar o que escrevi segundo uma certa perspectiva de distanciamento. Quando ocorre a decisão de publicar o livro, o grande desafio é parar de corrigir ou de modificar os originais. Tenho muita dificuldade de decidir quando um poema está efetivamente pronto: a mim me parece que os poemas têm uma vida própria e, às vezes, são ariscos ao próprio poeta que os concebeu. Quase sempre são eles que se terminam; ao poeta resta, então, conformar-se com o fato e contemplar essa bela rebeldia das formas.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Para a poesia, acho que é saudável apostar tanto no caos quanto na ordem. Cada um tem o seu momento e sua contribuição na elaboração de um poema. Em geral, minha semana é recheada de leituras e, quando vou escrever efetivamente, preciso de isolamento e silêncio, mas não necessariamente de um lugar especial. Segundo a concepção que tenho de poesia, acho que é saudável manter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo, sejam eles projetos de leitura, projetos acadêmicos, projetos de escrita, pesquisas etc. É bom estar sempre lendo e exercitando a escrita de formas variadas e com finalidades e métodos variados. A escrita de poesia, parece-me, ganha muito com essa multiplicidade.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
A literatura é uma forma de interpretação da realidade, que existe independentemente da consciência do poeta. Quando escrevo poesia, essa é a minha motivação: como posso abraçar a realidade em movimento e tentar dar a ela um sentido que seja ao mesmo tempo meu e de outros? Como transformar a linguagem numa forma de partilha da realidade ao mesmo tempo rigorosa e aberta ao movimento da vida? Como construir uma interpretação de fatos e sentimentos, às vezes desconexos, que possa fazer da linguagem poética um veículo de diálogo, a fim de que outras pessoas possam ver ali também, em alguma medida, seus dilemas, sentimentos, problemas e anseios apresentados e postos em uma nova forma de inquietação? São essas as questões que me motivam essencialmente. A literatura para mim é esse trabalho intenso, muitas vezes dolorido, de confronto entre o interrogar o mundo e o comunicar da realidade através de uma dinâmica de interação entre planos objetivos e subjetivos, que em seus fundamentos envolve a linguagem numa chave criativa.
Quando resolvi me dedicar à escrita, na metade da adolescência, já intuía algo dessa dimensão de investigação da realidade pelos vínculos da intimidade (ou do lirismo) de que hoje tenho uma consciência mais apurada. Embora sem saber exatamente, era isso que interessava ao jovem então aspirante a escritor. Comecei, então, a escrever para tentar entender melhor meus sentimentos, o modo como eu enxergava o mundo e as próprias contradições da realidade. O veículo que encontrei para isso foi a poesia, gênero literário no qual me sinto mais à vontade como criador. Com ela, consigo realizar de modo mais tranquilo algo que é essencial ao fazer literária literatura: o diálogo com outros escritores, a interrogação da tradição etc. Comecei a escrever, portanto, com uma esperança muito simples, trivial: a de desenvolver uma conversa com alguém, nem que esse alguém fosse eu mesmo. Hoje tenho condições e saber melhor que o escritor é sempre um outro quando escreve; isto é, ele é tornado outro pela alteridade que a forma literária impõe a quem se entrega à objetividade da linguagem que constrói o poema.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Creio que haja um bom bocado de pretensão quando um poeta proclama que desenvolveu um estilo próprio. Cabe, me parece, aos leitores dizer se e o quanto um tal estilo é próprio ou não. O desenvolvimento de uma obra literária, considerando-a como o conjunto prolongado de textos produzidos por um autor, segundo eu acredito, é, do ponto de vista do autor, uma busca incessante; algo como uma utopia, que se afasta de nós à medida que caminhamos, sendo, por sua vez, aquilo que anima o caminhar. Se o estilo não for uma busca inquieta, não se trata de uma verdadeira obra literária; passamos ao reino dos códigos acomodados, que comprime e domestica a linguagem sob a lei do fetichismo cotidiano. Nenhum grande autor pode estar satisfeito com o “seu” estilo, pois isso seria satisfazer-se com a tendência geral à reificação da própria voz. Portanto, melhor do estilo de um autor, observado desde o seu próprio ponto de vista (é bom repetir), será sempre aquele que está por vir. Do ponto de vista do leitor, por outro lado, tem-se, por óbvio, uma outra perspectiva. O leitor está mais capacitado a ver constantes, inconstâncias, mudanças, coerências, irregularidade, aperfeiçoamentos e incoerências no conjunto de textos que forma a obra de um autor. O momento propício para que isso se enxergue em termos orgânicos é quando a obra termina, o que quer dizer que ou o autor morreu ou parou de escrever e, portanto, conseguiu se libertar da missão de lidar com esse bicho meio indócil que é a busca por uma voz entre tantas vozes. É o fim de uma obra que dá sentido pleno ao seu estilo. Finda, uma obra fornece aos leitores a possibilidade de ponderação de sua verdadeira dimensão, considerando as relações entre os livros, que são as suas partes constitutivas, bem como as relações de seu estilo com outros autores e com a linguagem e os fatos de seu tempo, por exemplo.
No tocante aos autores que mais me influenciaram, são muitos, porque me considero alguém que aproveita muito de muita gente. Mas quero referir aqui os brasileiros Cabral, Drummond, Bandeira, Gullar, Chico Alvim e Orides Fontela; os franceses Baudelaire e Rimbaud, além dos de língua inglesa Eliot, Frost e Cummings e os italianos Dante e Pasolini. Esses são apenas os nomes que leio e releio com mais frequência e que sempre me espantam, no bom sentido que tem o encontro com a poesia que nos desassossega.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Essa é sempre uma tarefa muito ingrata, mas que, ao mesmo tempo tem, para mim, o sabor interessante da inconstância. Provavelmente, se a cada ano tivesse de respondê-la daria sempre uma resposta diferente. Então, por hora, vão essas três recomendações:
A Divina Comédia: é uma obra sem igual e, por incrível que pareça, extremamente atual. Eleva a língua italiana e a experiência da sensibilidade literária a um grau de complexidade e de intensidade poucas vezes visto. É uma obra a que sempre volto, sempre recorro e que sempre me surpreende.
Sentimento do mundo: para mim é o livro mais tocante de Drummond. Alguns diriam que, em A rosa do povo e em Claro Enigma, Drummond é mais poeta. Até concordo; entretanto, este é um livro pelo qual tenho um carinho especial. Ele me conforta e me forma, me faz homem. São poucos os livros com os quais tenho essa relação. Quando estou diante dele, me sinto junto de um amigo querido.
Pesado demais para a ventania: é uma antologia poética de Ricardo Aleixo, que, para mim é um dos caras mais interessantes que produziram literatura no Brasil nos últimos trinta anos. A coletânea demonstra muito bem o alcance e a vibração da obra do Ricardo, que está numa frequência superior ao trivial. É um livro que mantenho bem perto desde que o adquiri há uns dois anos, porque me inspira muito e me incomoda, no bom sentido do termo.