Alexandre Marino é jornalista e poeta, autor de “Hiatos” (Patuá, 2018).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo por volta de 6 horas, mas meu dia só fica completo se o começo com alguma atividade física, geralmente uma caminhada de 40 minutos. Caminhar entre árvores e ouvir o canto dos pássaros me proporciona alguma resistência aos aborrecimentos e más notícias que poderão vir ao longo do dia, nestes tempos tenebrosos. Respiro fundo, dialogo com os bem-te-vis e sabiás, troco ideias com os cães que levam seus donos para um passeio, pratico telepatia com as corujas, depois volto para casa e dou uma rápida lida nos jornais. A partir disso, minha agenda varia muito. Às vezes escrevo um pouco pela manhã.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não escrevo todos os dias e nem tenho uma hora específica para escrever; isso vai depender do resto do dia. A poesia sempre me acompanha de um jeito ou outro, mas como sou jornalista e servidor público, minha prioridade é cumprir meu horário na Assessoria de Comunicação do Ministério da Educação, ou mesmo outros trabalhos que faço eventualmente para revistas, jornais ou sites. Sempre dedico à literatura uma parte do meu tempo. Seja para escrever, para leitura, para fazer anotações, para criar algum projeto, ou para uma espécie de diário secreto onde derramo pensamentos, reflexões, angústias, lembranças, alegrias, coisas que, por uma razão ou outra, são marcantes, me incomodam ou devam ser registradas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu gostaria de escrever literatura todos os dias, todas as horas, mas isso é impossível e inviável. Tenho uma série de projetos, em prosa e poesia, que vou realizando aos poucos, ou deixando que se percam se não tiverem a necessária força. A poesia sempre me ocorre, sob temas os mais variados, e quando surge um poema tento encaixá-lo no projeto de um livro. Escrevo aos poucos, sem metas, porque considero importante a espontaneidade na poesia. Mas essa espontaneidade pode ser estimulada, tanto que à medida que o livro vai tomando forma, minha criatividade vai se tornando mais fértil. Já para fazer prosa o processo é um pouco diferente. Escrevo crônicas e contos, que nunca publiquei em livros, mas estão engavetados em grande quantidade, e um de meus projetos para os próximos anos é montar dois ou três livros com esse material.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Minha escrita é sempre movida pela observação e pela sensibilidade. As ideias me vêm com facilidade, mas se não faço imediatamente algumas anotações, elas podem se perder. Há ideias que exigem alguma pesquisa para que o conto ou poema se complete. No caso da poesia, eu escrevo uma versão inicial e, depois de pesquisar o que for necessário, eu faço as adaptações. Em seguida vou ajustando a linguagem, buscando a melhor palavra, alterando o ritmo… A versão inicial do poema é sempre bem diferente do resultado final, porque eu mexo muito mesmo. Mas, antes de mexer, deixo a versão anterior dormir algum tempo, até que eu próprio me distancie um pouco. E sigo nesse processo até o resultado que considero final. Para a prosa, geralmente estabeleço um tema, penso um pouco a respeito, faço anotações e começo a escrever. Sempre há a necessidade de pesquisar alguma coisa, porque vou levantando questões ao longo da escrita que não sou capaz de responder. O resultado final é como a montagem de um quebra-cabeças, em que reúno anotações e depois burilo tudo. É um processo que evoluiu ao longo do tempo, e essa evolução é mais perceptível na poesia, a partir dos sete livros que publiquei – o primeiro saiu em outubro de 1979, e estou me tocando agora, lá se vão 40 anos! Nessa trajetória desenvolvi uma linguagem pessoal, que é a minha linguagem, e já não me interessa muito se há quem goste ou deixe de gostar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
É uma luta terrível. Quando lancei Arqueolhar, em 2005, o crítico Antonio Olinto, da Academia Brasileira de Letras, escreveu em sua coluna na Tribuna da Imprensa, do Rio, que aquele livro me colocava entre os maiores poetas brasileiros. O choque que levei ao ler aquilo me provocou um “branco” de vários meses. Custei a voltar a escrever. Mas os brancos ocorrem para qualquer escritor, em certas circunstâncias. Para controlá-los, é preciso ter disciplina, o que, reconheço, me falta. Mas escrever é necessidade vital, deixar de escrever é como perder o fôlego – você sempre vai respirar de novo. E veja que fazer literatura é diferente de fazer jornalismo, eu sempre estive no meio desse jogo. Vivi isso durante anos, trabalhando em redações de jornal, e vivo até hoje. Se você tem uma pauta e a matéria tem que estar pronta em duas horas, ela estará pronta, você nem vai questionar. Com uma crônica também acontece isso, se você tiver um espaço no jornal e um prazo para entregá-la. Já um conto, um poema, sem esse tipo de compromisso, não têm “dead-line”. Isso fez de mim um escritor meio bissexto, porque prezo muito o resultado final e trabalho o texto o tempo que for necessário, até que me satisfaça plenamente. Meus livros mais recentes, Exília (2013) e Hiatos (2017), levaram uma média de quatro anos cada um para que ficassem prontos. Mas eu acredito que a maior ameaça à atividade do escritor é a falta de esperança. Nestes tempos de trevas, quando percebemos um projeto governamental de destruição do país, tenho lutado muito contra isso, todos os dias. Às vezes me parece que toda a arte é inútil, mas o pensamento logo passa, até porque é isso que eles querem que pensemos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muito, alguns bem mais que outros. É possível que meus melhores textos tenham surgido quase prontos, mas é difícil quantificar isso. Tenho poemas que passaram por várias versões para finalmente se tornarem alguns de que mais gosto, ou que tenham se tornado mais marcantes para mim. Acho importante que outras pessoas leiam meus textos, mas antigamente eu mostrava a mais gente que hoje. Tenho o privilégio de ter em casa uma grande leitora – Nádia, minha esposa. O olhar dela é fundamental para minha literatura. E nossas conversas sobre literatura amadureceram também o meu olhar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minhas anotações e primeiros rascunhos são feitos a lápis, geralmente em cadernos que tenho sempre à mão. Especialmente quando é poesia, uma linguagem que traz sempre um jorro emocional. Tenho a sensação de que escrever a lápis promove uma ligação espiritual entre mim e o papel, que não alcanço ao escrever no computador. Depois que o poema foi rascunhado e já percebo por onde ele seguirá até a versão final, passo a trabalhar no computador. Aí a tecnologia me proporciona maior agilidade. O dicionário eletrônico, que uso muito, é ferramenta indispensável. Às vezes passo um bom tempo tentando encontrar uma palavra, que possa transmitir com precisão a ideia exata que vai dentro de mim. Textos em prosa eu faço direto no computador, que, ao contrário do lápis, me ajuda a vencer a aridez das primeiras 10 linhas. E depois se torna uma ferramenta muito útil para a construção das frases e na busca da palavra certa.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias vêm da minha sensibilidade, da observação, minhas leituras, minhas conversas, da música, do cinema, de minha capacidade de reagir a estímulos externos. E da memória, uma inesgotável fonte de ideias. E creio que também do meu anjo da guarda, porque às vezes sou capaz de ouvi-lo sussurrando algumas frases ou palavras. O que procuro é manter a sensibilidade sempre afiada e, como disse lá atrás, preservar um fio de esperança que dê sentido à minha literatura. Acredito que a arte é o ponto mais alto de nossa humanidade, e é ela que nos permite o diálogo entre nós, mantendo a esperança acesa.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou foi em decorrência da passagem do tempo, de minha maturidade e das experiências que vivi. Tudo isso mudou não só minha literatura, mas minha compreensão do mundo que me cerca e de mim mesmo. A maturidade aguçou meu olhar e por sorte não roubou minha sensibilidade. Ao mesmo tempo, anos e anos de trabalho com a escrita – na literatura, no jornalismo, na minha atividade profissional – me deram algum conhecimento da Língua Portuguesa. Até porque eu sempre busquei esse conhecimento, nunca fui relapso ao escrever. Mas essa prática também me trouxe a consciência de que é impossível saber tudo e sempre haverá em nós um convívio entre o conhecimento e a ignorância. Se eu pudesse voltar ao tempo em que escrevi meus primeiros textos, no início da adolescência, eu diria a mim mesmo que não deixasse de escrever, porque o exercício da escrita é fundamental e só assim ela se aprimora com o tempo; recomendaria evitar a todo custo os clichês e os cacófatos; não me aconselharia a deixar de publicar, porque isso também faz parte do processo de amadurecimento, mas estimularia que me abrisse às críticas e soubesse aceitá-las, compreendê-las e tirar proveito delas. Por fim, recomendaria que me aproximasse mais de alguns mestres que passaram pela minha vida, que os reconhecesse e ouvisse mais, e me aprofundasse na leitura dos grandes livros que a humanidade produziu.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho vários projetos em gestação ou em andamento, alguns bem antigos. Além desses, tenho a fantasia de escrever um romance interminável. Um romance que fosse escrito um pouco a cada dia, até o último dia da minha vida, sem que fosse concluído. É uma ideia muito vaga e não sei se um dia a levarei a sério, mas eu gostaria de ler um livro que fosse escrito a partir de um projeto como esse. Infelizmente, se o livro existisse o autor já estaria morto.
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Atualização publicada em 20 de maio de 2020:
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Um novo projeto geralmente não passa de uma vaga ideia, que tenha relação com alguma coisa que esteja me incomodando, ocupando meus pensamentos ou sentimentos. Os primeiros textos surgem assim, mas depois aquela vaga ideia vai tomando forma, se transformando em algo mais concreto, e assim o projeto se torna mais nítido, posso me aprofundar no planejamento. Geralmente é nesse momento que a escrita começa a fluir melhor e o trabalho avança cada vez mais seguro e veloz. Como se pode perceber, as primeiras palavras, frases e páginas são mais difíceis.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Há alguns meses venho trabalhando numa espécie de “projeto de projetos”, porque estou tentando aumentar minha velocidade de produção literária, ou, para não ser mal compreendido, organizar melhor os meus processos de criação. Um dia, me perguntei: o que terei produzido daqui a 10 anos? Foi aí que surgiu o meu Projeto 10 Anos, que é um planejamento de toda minha produção literária para os próximos 10 anos, e não só a criação, porque também envolve a divulgação de meu trabalho e a organização de tudo que pretendo fazer que diga respeito à literatura. Isso inclui, por exemplo, o Poesia.Andarilha, perfil que criei no Instagram para divulgar poemas de outros autores que na minha visão mereçam e precisem ser lidos. O Projeto 10 Anos tem me ajudado a disciplinar melhor o meu trabalho, e já começo a sentir o resultado disso. Entre a primeira parte desta entrevista e a segunda, eu me transferi do Ministério da Educação para o Ministério da Economia, onde continuo trabalhando como editor de textos da Assessoria de Comunicação. No momento em que respondo à entrevista, estou em quarentena, em virtude da pandemia de coronavírus, e cumpro minha rotina de trabalho em casa. O que me sobra de tempo livre eu dedico à literatura. No atual momento, meu principal projeto nessa área é um novo livro de poemas, que espero finalizar até o fim do ano. Paralelamente, cumprindo o Projeto 10 anos, separo e organizo contos e crônicas que escrevi ao longo dos últimos anos e que nunca incluí em livros. Além disso, estou refazendo meus espaços de divulgação, como o blog Poesia Nômade e minha página no Facebook.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Estamos neste planeta de passagem, mas sempre tive a sensação de que cada um de nós deve deixar a sua interpretação sobre essa curta viagem, e assim contribuir para uma espécie de leitura coletiva do mundo. Este é um dos papeis de cada artista – e isso inclui músicos, poetas, romancistas, artistas plásticos, cineastas, etc: enriquecer esse acervo interminável. E não só dos artistas. Cada pessoa que passa pelo mundo deixa alguma marca. É como uma grande teia que vai sendo tecida. Não sei se houve um momento em que decidi me dedicar à escrita, porque desde que me alfabetizei sempre tentei juntar as palavras e frases. Fui alfabetizado por minha mãe e uma tia, ambas professoras, e aos cinco anos de idade já tinha um caderninho onde criava pequenas histórias. Na escola gostava de escrever redações, e depois na adolescência participei da criação de jornais e revistas… Uma dessas revistas entrou para a história. Nós, escritores iniciantes, a criamos em Passos, minha terra natal, em Minas Gerais. Chamava-se Protótipo, a lançamos em 1972 e ela durou cinco anos. Algum tempo depois o escritor Glauco Mattoso a citou, em seu livro “O que é Literatura Marginal”, da Editora Brasiliense, como uma das pioneiras desse movimento, que se alastrou por todo o país na década de 1970.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Não gosto de citar influências, porque isso pode gerar uma incômoda busca pelos sinais de outros autores naquilo que escrevo. Minha literatura foi influenciada por todas as artes com que tive contato – a música, as artes plásticas, o cinema, e, é claro, os livros que li. Já o estilo próprio é fruto do exercício de escrever, quando você vai encontrando sua linguagem e descobrindo aquilo que é mais forte na sua escrita.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Tive que pensar muito para responder essa pergunta, porque não há um, dois ou três livros que digam tudo o que queremos dizer ou devemos aprender sobre literatura. Mas vou correr o risco. Primeiro eu recomendaria O arco e a lira, do mexicano Octávio Paz, uma profunda reflexão sobre poesia, em que ele aborda o tema por diversos ângulos e nos leva a compreender a grandeza da experiência poética. Depois eu citaria Maquinação do mundo, de José Miguel Wisnik, que analisa a obra de um de nossos grandes poetas, Carlos Drummond de Andrade, a partir de sua experiência com a mineração. Mesmo quem conhece toda a obra de Drummond é impelido a revisitá-la depois da leitura desse livro, que revela como a mineradora Vale, ao explorar o minério de ferro em Itabira, terra natal do poeta, marcou profundamente não só sua poesia, mas sua vida. É um tema atualíssimo, por revelar como a exploração predatória do meio ambiente só provoca o mal entre os seres humanos. O terceiro livro é A divina comédia, obra-prima do poeta italiano Dante Alighieri, em que ele visita o Inferno, o Purgatório e o Paraíso para compreender o papel do homem no universo. Redigida no início do século 14, essa obra revolucionou a língua italiana.
Bem, mas como o leitor que me leu até aqui deve estar curioso sobre a minha poesia, também vou indicar três de meus livros. O primeiro é Arqueolhar, em que eu faço uma viagem de volta à cidade onde nasci, Passos, em Minas Gerais, para dialogar, já na maturidade, com o menino que fui. Não é um livro de pretensões nostálgicas, é uma releitura de ícones da minha infância. O segundo é Exília, livro escrito com o apoio da Bolsa Funarte de Criação Literária, em que abordo por meio da poesia o sentimento de não ter lugar no mundo. O terceiro é Hiatos, meu trabalho mais recente, em que tento preencher as lacunas abertas pela violência, pelas ausências e pela desesperança com a luz que só se encontra na poesia. De certa forma, esses três livros se complementam.