Alexandre Guarnieri é poeta e editor de mallarmargens.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Os meus projetos quase nunca respeitam protocolos cartesianos, lineares, mas obedecem à forças do inconsciente, da eletricidade da linguagem, de reações em cadeia superpostas… e as musas muitas vezes falam ao mesmo tempo, sussurram como num punk rock (e elas também sabem gritar). Há que se fazer um certo esforço para tentar isolar suas diferentes fontes e energias. Sendo assim, minhas semanas de trabalho sempre foram irregulares com muitas gavetas que vão se abrindo e fechando de forma intercalada, numa espécie de caos que em algum ponto se ordenará naqueles projetos que ainda encontrarão suas formas finais, entre os tantos outros inacabados que vão ficando para trás, sem qualquer garantia de resgate. Provavelmente eu já teria escrito uns 50 livros se todos tivessem prosperado a contento.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
É tão difícil escrever a primeira quanto a última… meus projetos são um misto de caos total e algum controle, muito embora possam transparecer apenas o rigor e a organização quando finalmente concluídos. Num primeiro momento, é sempre difícil saber exatamente quando está se originando um projeto que será prioritário. Podem surgir dois ou três ao mesmo tempo e as razões pelas quais ganharão suas escalas de prioridade são misteriosas para mim. Perto da conclusão de um projeto, ainda costumo sentir que a fluidez e o planejamento coexistiram desde o início.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Preciso de silêncio interno o que não significa que não possa criar meu próprio silêncio inibindo os estímulos externos voluntariamente. Conseguir isso é uma questão de treino. Quando sinto necessidade, entro em transe e já estou noutro lugar, no “reino das palavras” como disse CDA. Um lugar que pode ser pacífico e brutal ao mesmo tempo, com vozes se intercalando e se superpondo de forma ensurdecedora ou com ditados cristalinos surgindo claramente no ouvido interno. Com o tempo cada autor vai entendendo mais ou menos como visitar este território onde os textos vão sendo erigidos e estabelecendo estratégias melhores para navegar por ele.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Eu aceito o ócio total e completamente. Não luto contra ele. Sei que ele é parte importante do processo, tanto quanto os momentos de jorro e transe. Sem esse equilíbrio homeostático entre as erupções e o descanso ocioso, seria difícil tocar adiante qualquer projeto. Geralmente, quando me vejo em pausa, procuro ler, revisitar autores, descobrir filmes, pensar em outras linguagens artísticas, me alimentar de outras fontes que não a da palavra. O processo criativo revolve o lodo do inconsciente e é necessário deixar que o resíduo do fundo volte a assentar para que surjam de novo e de novo as condições favoráveis aos novos projetos.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Penso que a relação entre criador e criatura é sempre de amor e de ódio, de ternura e de implicância, sempre conturbada. Nunca há uma aceitação total e incondicional da criatura, mas o juízo é sempre (e constantemente) reposto em perspectiva crítica. Meu olhar vai se reciclando ao reler o que escrevi. Como se a energia que deu origem a esse ou aquele poema (ou livro) permanecesse viva na memória e reclamasse sempre esse novo olhar. Toda recepção é fluida e lida com fluxos de espelhamentos mútuos. É sempre possível ver a mesma obra de uma nova forma. Existem poemas com os quais me relaciono melhor. Gosto muito de “neon” e “pedra fundamental”, ambos do CASA DAS MÁQUINAS (2011), de “[]corpo de prova[]” e “mandala de houdini”, esses do CORPO DE FESTIM (2014). Mas provavelmente, noutro momento, escolheria diferente.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Sinto que os temas se impõe e quase sempre dependem de massa crítica. Penso que são elementos persistentes no meu imaginário, figuras que se fixaram no fundo da minha caverna pessoal, espécies de impressões daquilo tudo que fui filtrando em termos culturais ao longo dos anos (ou ainda, que se fixaram em mim logo depois da formação do cérebro, ainda tenro). Penso tanto no leitor quanto um escultor ou um pintor pensaria no seu espectador. Minha relação com a poesia é de concreção e fisicalidade, é material. Geralmente estou tão envolvido com a pesquisa de linguagem que pensar na recepção é algo muito raro. Talvez esse leitor ideal no final das contas seja aquele que se permita espantar. O espanto é um dos melhores alimentos para a poesia.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Em esculturas de figuras humanas, por adição de material, depois de desenhar ou rabiscar os esboços, o artista geralmente começa a tramar um esqueleto interno, de arame ou pedaços de materiais diversos que sirvam de estrutura para a peça sobre uma base fixa. Na minha forma de ver, nos meus projetos de livro acontece a mesma coisa. E prefiro mostrar o que quer que seja depois que a armação está quase toda coberta pela forma da massa, em vias de ganhar os detalhes finais e as últimas pátinas. Antes disso, posso até conversar sobre, falar das ideias, mas nunca mostrar os primeiros poemas. As primeiras pessoas a me ler são sempre pessoas por quem nutro muito afeto e confiança. Essas primeiras leituras são muito importantes e jamais poderiam ser gratuitas ou guiadas pelo ego.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Lembro que eu queria muito ser artista plástico mas quando me vi diante de uma folha de papel com uma caneta na mão… essa aparente simplicidade, essa economia de processos em meio à promessa da viagem ao reino das palavras… me vi fisgado, iniciando uma aventura que poderia alterar radicalmente minha forma de ver o mundo. Minha relação com a poesia começou cedo, na escola. Eu mesmo experimentei escrever poemas durante muito tempo (quase duas décadas) até pensar na possibilidade de produzir um livro. Não existe um marco temporal ou um evento específico, uma coisa foi levando à outra. Lembro de ter ficado meses sem escrever, me perguntando se realmente voltaria, devia ter uns 16 ou 17 anos e nem sonhava que me chamariam de poeta. Na primeira vez que isso aconteceu fiquei aterrorizado. Naquele momento era impossível saber que isso era parte do caminho. Teria ajudado uma orientação mas talvez tenha sido bem mais importante viver essa experiência do abismo, o vazio diante do espelho e da identidade em construção. Se alguém tivesse me dito “você conviverá para sempre com esse abismo” eu provavelmente não acreditaria. Mas o caminho é algo que a gente aceita ou não.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
É importante ter clareza do porquê alguns autores (mais que outros) nos impressionam tanto. Demoramos algum tempo para conquistar essa clareza mas na medida em que vai ficando claro, o estilo vai se revelando como uma luz no fim do túnel. Ele é inicialmente uma amálgama intuitiva das vozes que escolhemos admirar e com as quais escolhemos conviver, experimentar, sentir, ler, reler. Muito lentamente, justamente quando vamos entendendo os porquês, é possível obter o esboço do guia de quais elementos conservar e quais descartar, quais escolhemos perseguir, nutrir. O estilo nasce no paideuma. Neste sentido posso dizer que meus mestres foram Augusto dos Anjos, JCMN, Mauro Gama, Haroldo de Campos, Wlademir Dias-Pino, Ferreira Gullar, Francis Ponge, Mario Chamie…
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Ultimamente me encantei ao conhecer a obra da Luci Colin e lembro tê-la recomendado pra várias pessoas.