Alexandre de Castro Gomes é escritor de literatura para crianças e jovens e presidente da AEILIJ na gestão 2015-2019.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Como eu geralmente durmo tarde, acabo acordando tarde. Isso, claro, se eu não estiver em viagem, ou com compromisso marcado logo pela manhã. Nesses dias, ainda na cama, eu acesso as redes sociais e checo os e-mails, respondendo o que for mais urgente. Converso com a Cris sobre as tarefas da casa e dos filhos e depois saio para a caminhada, onde organizo na cabeça a agenda do dia. Volto e respondo mais mensagens. Aí é almoço e computador, ou almoço e compromissos de rua.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Depende do tipo de trabalho. Muito do que faço envolve contatos com outras pessoas, sejam editores, colegas, jornalistas… Nesse caso funciono melhor depois do almoço. É quando a cabeça já está a mil, estou conectado e com o celular e o notebook a pleno vapor. É a hora de divulgar, inventar, atualizar tabelas, montar esqueletos de ideias. Trabalho nos sites, blogs e páginas que administro. Me dedico à AEILIJ. Resolvo problemas. No começo da noite me dedico à família e depois que os filhos vão dormir, me preparo para escrever. Começo relendo o que já escrevi. Altero mil coisas. Depois passo para os novos escritos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, mas não literatura. Infelizmente a literatura não paga todas as minhas contas e preciso me dedicar a outros trabalhos que me consomem muito tempo. E tem ainda a AEILIJ. Na época da preparação do Anuário, por exemplo, preciso parar tudo o que estou fazendo por algumas semanas para preparar a publicação. Além disso tudo, gosto de pesquisar ideias, de buscar o inédito. Posso passar meses pesquisando e editando as minhas anotações. Por essas e outras, a minha escrita literária acontece em períodos concentrados.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Primeiro vem a pesquisa e a leitura. Vasculho os assuntos em estudo na minha biblioteca e em livrarias. Viajo na internet. As vezes compro livros. Pesquiso elementos para a história. Estudo os personagens, o ambiente… Se o texto for infantil, eu trabalho todo o roteiro na cabeça antes de escrever o primeiro parágrafo. Essa etapa pode durar meses. A pesquisa anterior e a preparação antecipada do roteiro tornam a escrita mais fácil de começar. Finda a digitação, vem o processo de edição e revisão. Como o texto infantil é relativamente curto, a edição e revisão acabam sendo naturalmente mais rápidas do que em textos mais longos.
No texto juvenil, todos os processos levam mais tempo. Os temas e conflitos são mais complexos e, consequentemente, os processos de pesquisas e criação de roteiro são mais demorados. Crio uma espinha dorsal da história antes de começar a escrever. Já sei qual o conflito, quem são os personagens principais e como tudo vai acabar. Muitas vezes vou brincando com o roteiro a medida que avanço na história. Crio novos conflitos, apresento novos personagens e trabalho histórias paralelas. Mas o final é sempre aquele que foi decidido antes. Porque foi para ele que encaminhei o texto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lá no início, eu não sentia medo de não corresponder às expectativas de ninguém. Eu comecei escrevendo para mim mesmo e poucas vezes não gostei do resultado. Mesmo quando era ruim para os outros, era bom pra mim, porque eu escrevia aquilo que eu queria ouvir. Quando passei a escrever para crianças, aí sim, tive um pouco de receio de não conseguir me comunicar com elas. Foi um desafio. Meus textos eram um pouco mais “adultos”. Meu primeiro livro infantil publicado falava sobre um tribunal, com réu, juiz e promotor. Mas ficou lúdico. O retorno foi ótimo. Fui me aproximando. Nessa época, os meus filhos eram pequenos e eu fazia laboratório em casa. Reaprendi a ser criança e me lembrei como gostava de ser tratado quando era criança. Eu passei a escrever para eles, mas depois eu voltei a escrever para mim também. Dessa vez para a minha criança interior. Depois fui convidado para visitar escolas. Bati altos papos. As crianças são muito sérias com o que leem. Elas apontam os erros. São mais questionadoras. Querem mistérios, aventuras, humor! Nos demos muito bem!
Não sinto ansiedade de trabalhar em projetos longos. Os processos são sempre longos, mesmo os livros mais curtos levam muito tempo para ficarem prontos. Acho que essa ansiedade, esse medo de não corresponder, veio com os meus projetos em parceria. Foi assim com “Filhos de Peixe” (Mar de Ideias), livro que organizei com os textos e ilustrações de 10 crianças entre 7 e 14 anos, filhas e netas de autores de literatura. Meus filhos estavam entre elas e meu medo era que algo não desse certo. Não queria decepcioná-los de nenhuma forma. Consegui. Ficou lindo. Esse livro está com certeza entre os trabalhos mais legais que já fiz. E não tem uma linha de texto literário meu nele.
Quanto às travas da escrita, elas existem. Tem dias que as ideias não vêm. Aí aproveito pra fazer outra coisa. Mudo o banner do Facebook. Pesquiso meus livros no Google. Leio livros da estante. Coisas do tipo. Às vezes, só gasto o meu tempo com bobagens mesmo. Muitas vezes essas bobagens cutucam a minha veia criativa e daí brota um começo de uma história. As ideias surgem quando menos se espera. Claro que tudo que é demais acaba sendo ruim. Mas para quem trabalha com arte, um pouquinho de procrastinação é mais benéfico do que maléfico. Só precisamos mantê-la sob controle.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso até achar que ficou bom. Podem ser várias leituras ou uma leitura só, depende do texto, mas normalmente acabo passando mais tempo na revisão do que na escrita em si. Eu tenho um juvenil, por exemplo, que está na metade há uns oito anos. Toda vez que eu o pego para escrever, acabo lendo tudo de novo e mudando um bocado do que estava pronto. Não avanço com o texto. É um desespero! Preciso me policiar com isso e passar um bom tempo com ele para voltar ao ritmo que tinha lá no começo.
Eu sempre mostro os textos prontos para a Cris Alhadeff, minha sócia conjugal e ilustradora de LIJ. Ela é super crítica e isso é bom, pois acredito que a crítica é mais valiosa do que o elogio. Antigamente eu trocava textos com amigos escritores, mas não faço mais isso. Há pouco tempo, enviei alguns poucos textos para uma agente literária, uma amigona minha, e ela me deu um ou outro toque. Foi bom.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia é excelente. Faço minhas pesquisas online, escrevo no editor de textos, divulgo os meus livros nas redes sociais… Antes de ser escritor, eu tinha uma empresa de webdesign com a Cris. Criei sites, banners, logomarcas e newsletters para artistas e empresas, entre elas a EMI Music, Fafá de Belém, Roberta Miranda, Felipe Dylon, Charles Brown Jr, Francis Hime, etc. No entanto, quando comecei a escrever, o fazia a mão. Sentado no chão com o caderno em cima da cama ou do sofá. Hoje só escrevo no notebook.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias vêm de todos os lugares. É só manter as antenas ligadas. Pode ser de uma frase que escuto na rua ou de um desenho aleatório que alguém fez. Uma situação que eu vivi ou um acontecimento na vida dos meus filhos. As vezes vem de livros que li. De um refrão de uma música. Do vagar do pensamento em um banho demorado. Mas o mais importante não é a ideia em si e sim as ideias que vêm dessa ideia inicial. Tenho muitas ideias de livros anotadas em um caderno. Mas só se tornam livros aquelas que inspiram tramas e situações inusitadas.
Quanto aos hábitos, acho que o mais importante é estar em contato com o movimento cultural. Frequentar eventos, seguir seus artistas favoritos no Facebook, Instagram e Youtube. Ler seus livros e blogs. Entender o que está sendo produzido. A criatividade trava quando não há interesse pelo seu trabalho. Quando o artista se questiona. Para manter o interesse, é necessário se manter ativo, publicando, lendo e sendo lido. Vendo e sendo visto. Buscando as melhores editoras. Estudando. Frequentando oficinas e cursos de extensão. A informação é o melhor alimento para a criatividade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O processo mudou pouco. Continuo montando a história na cabeça antes de escrevê-la. Continuo fazendo as pesquisas. Sempre achei que o mais importante é a história. A sinopse tem que ser instigante e chamar à leitura. Se a sinopse for chatinha, então o texto é chatinho e não adianta rebuscá-lo com lindas palavras que a criança não vai gostar.
Talvez a maior mudança seja que agora eu experimento mais. Busco brincar mais com as palavras e não só com a história, embora ainda dê mais importância a ela. Me divirto montando o texto frase a frase. As vezes passo muito tempo em um só parágrafo. Estou cada vez mais exigente comigo mesmo.
Eu não mudaria o que fiz. O caminho que trilhei me deu mais de 30 livros publicados, alguns fora do Brasil, prêmios e indicações importantes, convites para as maiores feiras literárias do país e a presidência da mais importante associação nacional de autores de LIJ, única reconhecida pelos MinC e MEC. Talvez eu me sugerisse mais atenção em um ou outro título. Os títulos dos livros são mais importantes do se imagina. Diria também para batalhar mais pelos meus primeiros contratos. Me convenceria a não enviar 10 textos de uma só vez para uma mesma editora. Fui com muita sede ao pote e levei uns “nãos” que poderia ter evitado. São erros de principiante. Mas é necessário ser principiante para se tornar experiente.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Acho que comecei todos. Uma Pós-Graduação em Literatura Infantil e Juvenil! Já estou inscrito e começo em setembro. Quero montar um espaço para oficinas literárias. Já tenho o espaço, falta grana para os móveis e o equipamento. Planejo fazer isso quando terminar minha gestão na AEILIJ. Quero fazer um almanaque em parceria. Já comecei as pesquisas e arrumei um parceiro fantástico para essa empreitada. Quero montar meu próprio e-book e vendê-lo na Amazon. O texto e as ilustrações estão prontos. Precisa só de uns ajustes. Quanto ao livro que eu gostaria de ler e que não existe, já está em produção!
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Hoje em dia eu planejo tudo antes. Mesmo nos textos mais longos, eu gosto de ter ao menos a estrutura da história pronta. Preciso saber como as coisas se desenrolarão e como irá terminar. Posso mudar tudo no meio do caminho, e isso já aconteceu, mas se não tiver um norte, corro o risco de travar. No começo da minha carreira, eu me aventurava mais no texto. Escrevia livremente, sem destino. Tenho um livro que levei uns oito anos para colocar o ponto final porque não sabia como terminá-lo. Aprendi a lição.
Escrever a última frase é sempre o mais difícil. Até porque nem sempre a última frase do livro é a última frase escrita. Pode ser algo que resolvi incluir lá no meio depois que a primeira versão do texto estava pronta. Ah! Tem isso. Mexo muito nos meus textos durante as revisões. São ajustes que, para mim, fazem toda a diferença. Pode ser no ritmo, na métrica, inclusão de características, descrições mais ou menos detalhadas…
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Minha semana depende dos meus compromissos. Acabei de terminar uma pós-graduação e agora resolvi mergulhar em um mestrado. Isso me toma um certo tempo, pois envolve a produção de uma variedade de trabalhos acadêmicos. Além disso, dou aulas, palestras, tenho viagens marcadas e de vez em quando escrevo livros que me foram encomendados ou histórias que cismam de aparecer na cachola. Apesar de não ser mais o presidente da AEILIJ, ainda colaboro com a entidade, especialmente no final do ano, quando produzo o Anuário da Associação.
Eu preferiria me dedicar a um projeto de cada vez, mas isso não é possível. Do jeito que a vida está difícil, é necessário aproveitar quase todas as oportunidades que surgem, sempre se dedicando ao máximo a cada uma.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Eu não saberia mais viver sem criar. Adoro escrever, mas se não pudesse, me dedicaria à música, ao cinema, à fotografia, às artes, ao ensino das artes… Sinto a necessidade de tirar essas personagens de dentro de mim. São muitas que me pedem para nascer, que se revelam com toda a sua formosidade, querendo conquistar o mundo. Personagens com histórias que inspiram, que aguçam o senso crítico, que provocam reflexões e, com isso, nos ajudam a evoluir. É isso que me motiva.
O momento em que decidi me dedicar à escrita foi quando segurei pela primeira vez “O julgamento do Chocolate” (RHJ), meu primeiro livro publicado. Foi quando eu vi que aquilo era real. Que eu não precisava ter parente editor ou amigo escritor para me colocar lá. Cheguei sozinho, depois de muita luta. E se cheguei uma vez, chegaria de novo.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Não diria que tive dificuldades. Desde o início eu brinquei com o humor, com monstros, com o folclore, que é algo que me atrai bastante. Depois fui navegando por outros mares. Eu me propunha desafios e corria atrás para conquistá-los. Escrevi um livro narrado por um locutor esportivo: “Folclore de chuteiras” (Peirópolis); outro que pudesse ser lido de trás para frente: “A bola ou a menina?” (Melhoramentos); outro que brincasse com histórias tandem: “Histórias a quatro patas” (FTD); outro que invertesse o papel do objeto lido com o agente leitor: “O livro que lê gente” (Cortez); outro que misturasse folclore com investigação policial: “Quem matou o Saci?” (Escarlate); e assim por diante. Fiz o “Filhos de peixe” (Mar de Ideias) com textos escritos por crianças, mas revisados por autores conhecidos. Organizei e participei de “Origens” (Editora do Brasil), com mais quatro escritores muito talentosos, onde falamos sobre as imigrações dos nossos ascendentes. Enfim, creio que foi o caminho que acabou moldando o meu estilo. O resultado das vontades do momento. Tenho um amigo artista plástico que me disse certa vez que leu uma crítica de um sujeito que analisou seu trabalho como a obra de alguém que atravessava um momento turbulento. Isso podia ser deduzido pela quantidade de tons vermelhos em suas pinturas. Esse amigo riu e me disse que usava muito vermelho porque ele acabou comprando um pote grande e barato daquela cor. Sua outras cores estavam no final, mas ainda tinha muito vermelho sobrando.
De qualquer forma, concordo que somos marcados pelos autores que gostamos de ler. No meu caso, não foi um só autor que me influenciou. Sorvi o humor de Ziraldo, Stella Carr, Helio do Soveral, Ariano Suassuna, Luis Fernando Veríssimo, João Carlos Marinho e de vários autores estrangeiros, entre eles Wilhelm Busch, Gris Grimly, Edward Gorey e outros.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Essa é uma das perguntas mais difíceis. Escolher três entre tantos é impossível. Bem, colocarei os três primeiros que me vierem à cabeça:
“Talvez eu seja um elefante” (Melhoramentos), de Jean-Claude Alphen – O Jean-Claude, além de escritor é ilustrador. Esse livro foi escrito e ilustrado por ele. O seu traço é um dos que mais gosto na LIJ brasileira. É leve, expressivo e cheio de movimento. Lindo mesmo. Em relação ao texto, o Jean sabe se colocar no lugar do leitor criança e cria situações que parecem simples, mas que trazem uma complexidade de sentimentos enorme. Um coelho não sabe quem é e tenta se encontrar no mundo. Tudo recheado com muito humor.
“A cidade dos carregadores de pedras” (Cortez), de Sandra Branco e Elma – O meu exemplar desse livro é de capa dura, o que já acho muito legal. As ilustras da Elma são muito bacanas e suavizam uma história que, apesar de bem intensa, afinal fala sobre os problemas que carregamos, é contada pela Sandra de forma curiosa e divertida. Como assim temos que carregar pedras? Por quê? O resultado é uma obra deliciosa que nos faz refletir sobre nossas próprias vidas.
Mamãe trouxe um lobo para casa/A coleção de bruxas de meu pai, de Rosa Amanda Strausz e Laurent Cardon – Tá bom, aqui dei uma roubadinha. São na verdade dois livros diferentes. Mas como a FTD juntou os dois em uma edição própria, fica valendo essa. Sou fã do Laurent há anos. Um sujeito boa praça com talento transbordando pelas orelhas. Busquem seu trabalho no Google que vocês vão ver que bacana. Quanto ao texto da Rosa Amanda, sabe quando a sacada é genial? Pois é o caso neste livro. Um assunto delicado, que é o convívio da criança de pais separados com o namorado novo da mãe, ou uma das novas namoradas do pai, é abordado aqui com muito humor e inteligência. Um lobo que só faz “humpff” e uma bruxa que ameaça transformar as crianças em pulgas. Como conviver?