Alcida Rita Ramos é professora titular emérita da Universidade de Brasília e pesquisadora 1-A do CNPq.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Na verdade, deixo o dia me levar. Quando há alguma urgência, mal me dou o tempo de tomar café; quando não, dou-me todo o tempo do mundo: ler, cuidar de plantas, ouvir música, apreciar arte…
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
No embalo da escrita, qualquer hora é hora, até no meio da noite, se alguma ideia me acorda e precisa ser registrada antes de ser levada pelo esquecimento do sono. O ritual que cultivo não é ao começar a escrever, mas quando termino um texto: fazer uma limpeza na mesa de trabalho, pôr os livros e a papelada de volta a seus lugares faz bem à alma e dá uma sensação gostosa de fato (bem) consumado.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo sem um objetivo imediato. Nesses períodos de entressafra mental quem comanda minha rotina é a leitura.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Convivo comigo há décadas e ainda não me conheço o suficiente. A cada texto que preciso escrever, passo pela mesma angústia da página em branco. Sei muito bem que meu cérebro precisa de um tempo, mais ou menos longo, para processar dados, análises, insights, organização, mas essa consciência nunca me livra de me achar preguiçosa, incompetente, lenta, despreparada. Até que um belo dia, todo aquele trabalho cerebral silencioso vem à tona e sou capaz de escrever um artigo de 20, 25 páginas num fim de semana. Como a digestão alimentar, a digestão mental é um processo quase totalmente inconsciente, quando feita de modo saudável.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A fase que descrevi acima, a que chamo de nebulosa, é em geral preenchida por muita leitura, não só no assunto específico, mas em torno da problemática em questão, ou mesmo fora dela. Conforme o deadline se aproxima, vai crescendo a ansiedade, mas nunca acredito, realmente, que não vou conseguir finalizar o trabalho. Projetos longos – um livro inteiro ou uma tese, por exemplo – se desdobrados em seus componentes – um capítulo de cada vez, como se fossem artigos separados – perdem seu caráter de bicho papão e podemos encará-los como perfeitamente viáveis. Sempre ajuda fazer um roteiro que oriente o caminho da escrita.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Dependendo do texto, posso revisar no mínimo duas vezes ou bem mais. Sempre peço a, pelo menos, um colega para ler o que escrevo e, depois dos comentários, há sempre mais revisão. Só aí submeto para publicação.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Para destravar, muitas vezes começo com lápis, frases soltas que às vezes me vêm à cabeça nas horas mais inesperadas. Faço um roteiro à mão numa página ao lado com os itens que devem constar do trabalho e então vou para o computador, sempre de olho nessa checklist. Não gosto de powerpoint, datashow e outros gadgets que muitas vezes são usados para disfarçar deficiências de conhecimento e falta de criatividade.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias podem vir de qualquer fonte: lembranças de conversas com indígenas, discussões em sala de aula, troca de ideias com colegas e alunos, leituras específicas sobre o tema abordado e muita, muita literatura, obras de ficção que são quase sempre elaborações de experiências vividas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Tese, nunca mais! Fui criada no regime do discurso científico mais ou menos impenetrável. Desde a moda dos pós-modernos, percebi que escrever como gente normal também pode ser respeitável. Hoje abomino jargão, pedantismo, exibicionismo e tento escrever para, por exemplo, o porteiro do meu prédio entender.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Minha ambição, à moda de um horizonte que se vê mas nunca se alcança, é escrever artigos antropológicos no formato de contos, do tipo que Jorge Luis Borges elegeu como marca própria. Um livro assim, que eu saiba, ainda não existe, mas pode muito bem existir, certo?