Aderaldo Luciano é poeta, ensaísta e cantador.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Na saída do metrô Carioca que dá para a Avenida Rio Branco, na cidade do Rio de Janeiro, há vários livreiros de rua. É uma espécie de beco entre os prédios da Caixa Cultural e do Edifício Avenida Central. De um lado estão os livreiros; do outro, alguns camelôs. Livros e miçangas, pipoca e chapéus, carregadores de celular e músicos, banca de jornais e revistas e vendedor de discos de vinil estão lá, todos os dias, no sábado até 14h. Na esquina com a Carioca há uma lanchonete, seus sucos e salgados. Depois, o Itahy, botequim. Seguindo, a antiga livraria Camões, do Estrela. Uma farmácia. E a Galeteria Cruzeiro. É aí, nas mesas e cadeiras da Cruzeiro, no chão externo de pedras portuguesas que se reúne a ACACANCACA (Academia Carioca dos Acadêmicos e Não-acadêmicos da Carioca).
Não há calendário de reunião, não há protocolo, não há ritual macabro. A Acacancaca é um sorvedouro e qualquer transeunte que por lá se aproxime será imediatamente empossado. Não há número fixo de membros, nem obrigatoriedade de ser membro. Um membro pode deixar de ser membro e criar sua própria academia. O ex-prefeito Marcelo Crivella quis ser membro, mas não foi aceito porque não se aceita, na Acacancaca, esse tipo de gente malfadada. Nos reunimos sempre à tarde, raramente pela manhã. À tarde, já para o final da tarde, é quando o metrô toma de nós o protagonismo de ser buraco negro. Assim, as gentes vão sendo chupadas para dentro do subsolo, apressadas e automáticas. Mas muitos param nos livros. E fatalmente olham para a Acacancaca reunida.
Eu sou assim como esse mundo ali materializado. Não tenho qualquer programação, minhas semanas não começam, logo, nunca terminam. É um tempo contínuo e sobreposto, entreposto, enfileirado horizontalmente e verticalmente e em tosos os sentidos. Tudo que passa é empurrado para dentro do meu cérebro, uma máquina forrageira, é triturado e cuspido em letras, em sangue, em luz, em fome, em riso. Cada pessoa que passa é um projeto. Cada um que para na banca do Olivar é um projeto que trago comigo para casa e que na maioria das vezes naufraga no banco do trem, substituído por outro mais interessante. Escrevo como leio. Sempre estou lendo três ou quatro livros ao mesmo tempo. Agora mesmo terminei O Crime do Cais do Valongo, mas já estava lendo Torto Arado e Marx Estava Certo. Ao mesmo tempo iniciei um curso de ilustração, embora não saiba desenhar, e por isso mesmo.
Mas também finalizei dois projetos que caminharam lado a lado: Era Um Espinho No Olho E A Flor Da Lira No Peito e O Nome do Cantador. No entanto, meu projeto principal fora o Itacoatiaras, uma história em quadrinhos, que cedeu lugar, sem querer, aos dois projetos mencionados. Agora apareceu uma outra coisa e essa está me arrastando. Minhas mãos estão agarradas fortemente ao Itacoatiaras, mas Eu Sou A Mata Fechada está fazendo cócegas e eu sou fraco para isso. Então ficamos assim: não tenho método, não tenho semana, não tenho protocolo, não tenho nada, talvez nem mesmo sanidade. Uma coisa é certa: vou atravessando a pandemia com a cabeça pandêmica, repleta de ácido, dosada a surpresas nada surpreendentes porque a realidade é um caos e nem eu, nem ninguém, poderemos organizar.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Esse negócio de planejar não pertence ao meu mundo. Como se pode planejar quando não se tem dinheiro para pagar as contas? Não há planejamento. O que há é a busca pela sobrevivência. Sei que tem gente por aí muito certinha, que assina o Monday, que tem Trello, calendários riscados, post-its pregados em todos os lugares, quadros brancos e verdes e negros, agendas que apitam, contadores de palavras. São essas pessoas que querem ganhar o Jabuti, o Oceanos. Gente que escreve com a cabeça, criando metáforas complexas, tramas inimagináveis. Esse mesmo povo que dá curso de escrita criativa e dicas para se chegar a ser um bom escritor. Nada disso me preocupa ou encanta. Escrevo o poema porque vi uma fotografia de Francisco Almeida, lá do Cariri paraibano, ou do professor Egberto Araújo, de Campina Grande. Meu texto em prosa aparece depois que Toinho Castro, cabeça da Revista Kuruma’tá, me pede uma apreciação de uma canção de Ludi Um ou de Marília Parente.
Nós sabemos, eu e você que me lê, que é muito difícil falar algo para alguém, algo que é delicado, algo que vem nos subindo pelo estômago, seja uma resposta ou uma notícia de final de tesão, de final de relacionamento. É muito difícil a primeira palavra. Até a saudação “Oi!” é trabalhosa. Porque não será só um “Oi!”. A carga emocional, emotiva, nevrálgica, veste e reveste o aceno. É muito difícil a primeira frase, entretanto em muitas ocasiões ela vem com a facilidade de quem percebe que já tem um determinado contato em sua lista de amigos das redes sociais. Por falar em redes sociais, vejam como é fácil escrever qualquer merda nelas. A gente acorda puto e escreve lá: “Tô puto!”. De repente centenas de pessoas curtem, comentam e compartilham. Alguém pergunta: “O que foi?”. Outro diz: “Também!”. E assim a narrativa vai criando um corpo, uma direção, mas os comentários não são previsíveis. De repente alguém escreve: “Esse governo fascista é uma desgraça!”. E o papo toma outro rumo. Até que um desavisado escreve: “O céu está azul!”, ao que é repelido “Tá azul pra você, seu bosta!”. Caralho, você é o dono do post, ainda nem viu os comentários. Você o escreveu quando saiu de casa para o trabalho. Está no trem. Gente sem máscara, cuspindo na sua cara. Você lembra que tem uma nova cepa do vírus matando gente. Agora, sim, você está puto de verdade.
Quando chega na Carioca, ali onde a Acacancaca se reúne, você quer tomar um café. E vai tomar. Encosta no balcão, pede um pingado, pede o adoçante (é, você não quer mais comer açúcar, você quer o amargo do café mais a gordura do leite, você tá ficando fresco, é seu direito, é sua verdade). Pede dois pães de queijo. Isso tudo é automático e vai te segurar, pela barriga, até à 10h. Mas quando o café chega, antes de levá-lo aos pequenos lábios, você resolve ver as redes sociais. E tá lá um mundo de comentários a duas palavras automáticas que você escreveu antes de sair de casa: “Tô puto!”. Você quer encerrar isso porque ninguém entendeu que essa é sua forma de dizer bom dia, de dizer que está vivo, de afirmar ao universo, mesmo que na prisão das redes, que você existe, que você caga para as redes, que você quer mesmo é gritar “Me deixem em paz!”. Você quer colocar a última pá de cal. Quer encerrar isso. Quer assassinar todo mundo. Mas não lhe pertence mais nada. Tomou o rumo que a ficção tomou. Não tem controle. É a voz dos outros. É quando você leva o pingado à boca. Ele deixa de ser um pingado e passa a ser o sabor. Você identifica o sabor do café, o sabor do leite, está morna a bebida. Você levanta o olhar para a televisão e a manchete é “Lula elegível”. Você ri e não está mais puto. E escreve a última frase. O desfecho: “Gente, eu tô bem!”
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Uma vez, talvez eu já tenha dito, li um depoimento de Pepetela, o autor angolano de Mayombe, dizendo que escrevera seu romance no campo de batalha, guerrilheiro que era do MPLA, sobre um caixote, com as balas zunindo ao redor de sua cabeça. Meu amigo Nonato Gurgel, poeta e crítico, estava empenhado em escrever um livro chamado Baixo Baixada, com suas observações sobre a vida cultural e existencial da baixada fluminense. A empreitada de Nonato resultara de seu ofício de professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, em Nova Iguaçu. Todos os dias ele, morador de Laranjeiras, atravessava três vias importantes da capital: Presidente Vargas, Avenida Brasil e Washington Luís. Na ponte da Posse, fazia um meio balão à direita para chegar ao campus universitário, encontrar os colegas e diluir-se entre os seus alunos. Essa rotina, aliada a sua consciência político-poética, o instigou ao trabalho. O seu caderno de anotações não era caótico, era disciplinado, havia nomes, frases, pequenos poemas. As balas zunindo na cabeça de Pepetela eram outras e as mesmas balas na cabeça de Nonato.
Diferente do angolano, Nonato era potiguar, gostava da reclusão, evitava exposição, desaparecia por semanas, escrevia em sua cave pessoal. Logo ao iniciar o Baixo Baixada sentiu a necessidade de se isolar. Resolveu encontrar um lugar em Paquetá, a ilha linda, onde Anísio Livreiro estava morando. Foi procurar um local no qual pudesse se homiziar para escrever. Queria o silêncio, queria os pássaros, queria o mar, queria a paz, queria o tempo lento, quase parado, queria o baobá e as charretes da ilha, o almoço caseiro. Este seria o campo de batalha de Nonato: a ambientação, a luz, o fino vento e a lenta brisa. Era assim. A pandemia o pegou no meio do processo. O coronavírus colheu o poeta na véspera de seu aniversário de 60 anos. Não conseguiu terminar seu livro. Mas pensou-o, desenhou-o, anotou-o e sonhou o lugar manso onde o escreveria. Vocês devem estar lembrados de um conto de Borges, O Milagre Secreto. Não estão? Nunca o leram? Problema de vocês. Não saberão que, diante do pelotão de fuzilamento, Hladik fez um contrato com Deus. É só o que posso dizer.
Seguindo com a resposta: não há fórmula, rotina, tampouco lugar ou circunstância. Escrevo em casa, e nunca um livro, como disse Lau Siqueira. Preciso de silêncio, dentro e fora, mas não é um caso de vida ou morte. Agora, nessa pandemia da moléstia, estamos fechados em casa. Meus vizinhos tocam suas músicas em altíssimo volume. Cantam em volume triplicado. Todos têm cachorros. Esses cães ladram, latem, uivam, cantam, se comunicam. Um abre o vocal e os outros seguem o ritmo. É um coral de uivos e latidos, de pausas, cada um com seu timbre, com sua marcação. O da frente um pastor, o do lado um galgo, o de cima um poodle. São cães e sendo cães não querem saber de silêncio. Se há o silêncio para eles, se estão em silêncio, algo está desacontecendo. Agora mesmo estão calados. Devem estar alimentados, guardados, pensando em sua vida de cão. Eles têm seus quintais. Escrevem nesse quadrado. Eu escrevo em minha casa, num lugar de minha casa que chamo de quartinho, um ateliê, com meus poucos livros, poucos caracteres, muitos redemoinhos.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Estou travado há muitos dias, centenas de dias. Esta entrevista está sendo escrita e respondida depois de muito tempo, longo tempo, infinito tempo, mais de 200 dias, de mil horas, os elefantes da procrastinação são implacáveis, poderosos, trombas imensas, pés pesados, orelhas de abano e pequenos rabos sobre ânus fartos em defecar. No início de algum ano, anunciei nas redes sociais que faria uma lista dos maiores procrastinadores da Paraíba. Bruno Gaudêncio e Jairo Cézar disseram que eu seria o primeiro da lista. Os poetas do cordel brasileiro me pedem prefácios, apresentações, apreciações com três anos de antecedência porque já sabem desse meu suposto defeito. Todos acham que é um defeito, uma irresponsabilidade. Não é. É uma dor, um sofrimento, uma queda no abismo das pedras pontiagudas. Há um processo que não pode ser ignorado. Para escrever sobre um poema, um romance, um livro, uma canção, um disco, um filme, é necessário ler, ver, analisar, deixar o objeto grunhir dentro de você. Isso carece de tempo. O tempo não é linear, cronológico, cascata. Vai e vem, sobe e desce. O tempo, para mim, é como Kama Sutra, se enrola, encaracola, cabeça com pé, mão com nuca, língua com fígado.
Luís Fernando Veríssimo, em frase de efeito, disse que sua musa inspiradora é o prazo de entrega. Azar o dele. Ou sorte a dele. O prazo de entrega sempre vem acompanhado, em seu caso, de um cheque, um pix, um doc, uma ted. Não é meu caso. Escrevo porque estou numa cruzada-encruzilhada, numa guerra ancestral, numa trincheira sob forte ataque das balas, como Pepetela. Ou como Nonato atravessando a Brasil no caos dos engarrafamentos, dos assaltos, das dores. Não há pagamentos em vil espécie, há sorrisos, agradecimentos, sequência da luta, abraço. É um ringue e uma confraternização, celebração. Para vencer a procrastinação só há um remédio, uma atitude, deixar de se preocupar com prazo, com data de entrega, com encontro marcado. A luz acenderá um dia e tudo se fará, o espetáculo, até a poeira. Estou encaixotado, meus amigos. Até quebrar a primeira lasca de madeira já terei ficado entrevado. Vamos seguindo rumo ao sol!
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
A pergunta sobre o trabalho é complexa e armazena muita coisa. O que é escrever? Não escrever uma carta, um e-mail, uma postagem no Instagram, um bilhete verdadeiro, um pequeno mote. Escrever como ofício, assim como o gari que todos os dias, pela madrugada, atravessa a cidade na carroça do caminhão, se equilibrando entre o mau cheiro e os dejetos, entre um parceiro e um caco de vidro pontiagudo nos sacos frágeis. O gari vai recolhendo nossos excrementos, nossa comida estragada, nossos cascos, nossos papelões, nosso papel higiênico usado, nossas roupas rasgadas, o sangue dos absorventes íntimos, o cocô das fraldas descartáveis, um feto arrancado à noite, a gordura das lipoaspirações, os álbuns dos casamentos que deram errado, máscaras infectadas, larvas e moscas, a consciência torta dos machistas, a morte de Henry Borel.
Todo texto é fruto do trabalho. Alguns oferecem resistência quando são flagrados em delito, querendo saltar o muro do vizinho ou fugir pelo portão entreaberto. Na semana passada, ou retrasada, dois ladrões de bairro foram flagrados por um vizinho policial. Era quase meia-noite. Foram três ou quatro tiros, talvez só dois. A vizinhança toda se recolheu. As lâmpadas se apagaram, televisores foram desligados, os telefones ficaram em silêncio. Em alguns minutos, o burburinho na rua foi crescendo, as falas, os cochichos. Desci até o portão e olhei pela fresta. Vi gente que nunca tinha visto na frente de minha casa. Os dois ladrões estavam deitados no chão sob a mira da pistola do policial com a camisa do Flamengo. Um dos ladrões vestia a camisa do Vasco. Eles não ofereceram resistência. Estavam ainda sem entender os estampidos. Como se diz no Rio de Janeiro: perderam. Assim são meus textos. Vêm sorrateiros, me assaltam e fogem na esquina escura, longe da luz amarela do último poste. Armo emboscadas. Preparo minhas flechas. Dou polimento no arco. Isso dá trabalho. Isso não é a vida real. A vida real é feita de ações e contrações. Aqui, no texto, a vida real é feita de desautorizações, imprecações e insubordinações. Meu texto mais insubordinado foi um poema de 24 versos em 12 dísticos, sem título:
Hoje é meu último poema Palavra última, vírgula, Derradeiro voo solo, Petrificarei-me gárgula Estátua de sal trincada Que a um só beijo da água Escorrerá pelo ralo Para as ventosas das dragas Se à poesia não pude Suportar suas fortes cargas Se os pães do suor dos versos Não pude torná-los massa Se, à noite, a insônia imensa Foi minha última comparsa Sinto meus olhos chineses, Perderam a vida e a graça Sinto um total abandono De minhas antigas bases O paradigma das letras O diagrama das frases (Do organograma da vida À crise aguda da crase) Levam-me ao único poema Cancro, mitoma, metástase.
Me orgulho muito de ter conseguido terminar esse poema. É pouco, eu sei, mas tenho orgulho dele. E isso não é mínimo para mim pois não me orgulho de muita coisa que fiz. Exceto de ter lido O Corvo, de Poe, e o ter declamado sem errar nenhum verso, amando dizer ao final, mantra: Nunca Mais!
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Não tenho escolhido temas para livros. Tenho muitas ideias, mas elas não são para livros. É como uma caixa-forte onde as guardo. Reparem: tive uma ideia para um livro e caí na idiotice de contar numa roda de amigos. Era a história de um homem que não parava de mexer a cabeça de um lado para outro, para a esquerda e para a direita em intervalos de menos de um segundo. Num segundo ele estava olhando para a esquerda, no outro estava olhando para a direita. Foi numa reunião da Acacancaca. Aí, começaram as perguntas. E as conclusões. “Mas não existe ninguém desse jeito”. Só que na minha infância, na Rua do Bode, havia um homem que era assim. Ele não tinha controle. Ele queria ir para a frente e pendia para o lado, não conseguia nos fitar no olho, a cabeça dele dançava de acordo com uma coreografia aleatória marcada pelo seu sistema nervoso. E quando ele bebia, agravava. E era como se estive dançando um eterno carimbó, os tambores silenciosos em febril marcação. Seu corpo ia de um lado para o outro em segundos, não havia linha reta, era o homem zig-zag. Seu apelido era Chula.
Ao mesmo tempo, essa parábola que eu quisera contar me lembrava um personagem do Jô Soares chamado Múcio, contraditório, acompanhando sempre a opinião do último interlocutor. Achei que fosse uma boa ideia. Um bom tema para uma história, mas faltava estofo, faltava trama, faltava o óbvio. Mas era um bom tema. Um bom tema para um mau romancista. Um ótimo tema para um mau contista. Um ótimo tema para um péssimo poeta. Todos riram de mim. Em casa do mesmo jeito. Ninguém me deu crédito. O tempo passou e, numa dessas noites de busca por algum filme para ver na internet, encontrei A Balada de Buster Scruggs, dos Cohen, na Netflix. Esse filme é uma coletânea de contos, recheados de personagens trôpegos em seus roteiros. Há o episódio do jovem que não tem os membros e sobrevive nas mãos de um homem que o usa para apresentações teatrais, nas quais, o pedaço de homem recita trechos da bíblia e de outros livros clássicos com profunda dramaticidade. Poderia, ali, no roteiro dos Cohen, entrar o meu homem cuja cabeça não se equilibra e rotaciona de um lado para outro eternamente. Nessa minha ideia, ele é levado a um mecânico para que se crie um molde de metal para prender-lhe a cabeça. O molde é feito. Realmente a cabeça para, mas o corpo é quem começa a se mexer, tornando-se um problema maior. Quem quiser pode pegar essa ideia para si. Leve consigo os créditos.
Para essa história, eu imaginei um leitor ideal. Essa categoria do leitor ideal encontrei pela primeira vez, com detalhes sórdidos, em Umberto Eco, naquele Seis Passeios Pelo Bosque da Ficção. O leitor ideal é aquele que compreenderá a peça literária em sua totalidade e seguirá o roteiro do autor, compreenderá os pormenores e as minudências, as citações secretas e escondidas, é um santo ilustrado. Em outras palavras, não precisa ler ficção, está entranhado no autor, é um apêndice, um chato, aquele piolho pubiano. Não lê porque gosta. Lê porque sofre de doenças várias, inclusive a doença do leitor ideal. Mas isso é o que penso. Imagino que, quando alguém que gosta de literatura, que adormece lendo porque gosta de histórias, encontra Borges, lhe interessa menos o conhecimento enciclopédico de Borges do que o que ele faz com isso, com esse cabedal. Outros também são detentores desse conhecimento. Mas só Borges é Borges. É um minotauro e essa figura já basta para chamar a atenção. É a pena e o traço, o jeito de contar histórias. Foi assim quando me encontrei com O Jardim de Veredas Que se Bifurcam.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Nunca me sinto à vontade para apresentar rascunhos a alguém ou a ninguém. Tudo que escrevo é só rascunho. Publico-os e espero. As primeiras pessoas que leem meus manuscritos, digitais, são meus leitores das redes sociais. Há muito tempo parei de pedir opiniões a amigos, eles estão cheios de coisas para fazer, não merecem ser obrigados e ler o que escrevo, não os torturo com isso. Na verdade, nem sei como pedir a alguém que leia alguma coisa minha em primeira mão. É estranho. Talvez eu não seja um escritor. Ou talvez seja apenas um leitor. Como repetirei lá embaixo na penúltima pergunta: a vida de escritor não tem sido boa. A de leitor tem sido melhor. Mas a vida em si não é lá grande coisa, no plano geral do universo.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Como vocês veem, meus encontros foram basicamente masculinos. As prateleiras da Biblioteca Municipal eram um ninho de machos. Fui lendo esses machos. No colégio, os textos de mulheres foram aparecendo pingadamente. Os livros de Língua Portuguesa traziam, aqui e ali, um poema de Cecília Meireles, um excerto de Raquel de Queiroz, um soneto de Florbela Espanca, nada de Hilda Hilst, nada de Adélia Prado. Era como se na história da literatura brasileira não tivesse acontecido a escrita feminina. A macharia reinava alegre e pedante. Não que nos importássemos. Era o que se nos oferecia. Ao mesmo tempo, os livros didáticos nos pediam para interpretar as canções de Chico Buarque, de Vinícius de Moraes. Agora imaginem que, crianças como eu, vivendo no brejo da Paraíba, numa cidade raquítica, não víamos nossa cultura nesses livros. Acredito, com mais certeza hoje, que as nossas professoras e professores também eram colhidos pela dificuldade. Diante disso tudo, por volta dos 13 anos, pensei que seria possível inserir conteúdos locais. Eu queria ver letras de músicas de Marinês, trechos de Dona Ezilda Milanez Barreto, pessoas com as quais eu convivia e gostava. Queria ver os cantadores e poetas de cordel. Por esse tempo foi nascendo em mim a vontade de escrever.
Depois que aprendi a tocar violão, iniciei uma transição para a canção. Passei a compor no violão e a inventar letras herméticas, fruto das várias leituras juvenis. Ao mesmo tempo fui descendo mais para dentro da terra e querendo mais os elementos de minha cultura local: o sertão, a flora, a fauna, o mundo rodeante. Fui colhendo melodias de cantadores, de cantores regionais. Vi-me aproximando de um tipo de música muito atacada pelos preconceitos. João Gonçalves, o rei da cacofonia, por exemplo, foi um dos que me falaram muito e grandiosamente. Clemilda também, sendo ela a primeira mulher a desafiar os ouvidos da sociedade com suas ousadias de duplo sentido. Zenilton, Zé Duarte, Edson Duarte e outros caminhando nessa mesma faixa amarela, proibida, mas que nos abriam a possibilidade linguística muito viva e colorida. Depois, quando os festivais de arte da cidade se iniciaram, apareceu-me o teatro e uma autora fundamental dona Lourdes Ramalho. Essa mulher é a grande escritora do teatro paraibano. Vi muitas peças suas. Uma dessas peças, A Mulher da Viração, comoveu-me muito porque o personagem principal, ao redor do qual toda o enredo acontece, nunca aparece em cena. Seu nome é Aderaldo, um seminarista. De certa forma essa personagem escreveu um pouco do meu futuro. O que ninguém me contou é que a literatura é um apanhado de situações reais filtrado para uma encruzilhada de três bifurcações: o entretenimento, a reflexão, o mercado.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Todos os que trabalham com a escrita foram marcados pela presença, como uma sombra de chumbo, de alguém que os influenciou. O bom escritor é, primordialmente, um bom leitor, um devorador de literatura e de remédios, da farmacopeia, seja química, seja literária. Todo escritor se automedica. Lê as bulas e experimenta. Um dia eu quis ser Cortázar, no outro quis ser Verne, noutro quis ser Agatha e Le Guin. Tem escritores cujo estilo é inconfundível. Mas há as fases desses escritores. Sóror Juana Inés de la Cruz é intensa, seu estilo é um aguilhão incômodo. Maria Valéria Rezende conta histórias com uma doçura e força. Ambas, religiosas de alguma ordem católica, em tempos e territórios distintos. Micheliny Verunshk e Carola Saavedra e Ana Paula Maia são diferentes de Carolina Maria de Jesus e Maria Firmina dos Reis e Ana Maria Gonçalves. O caminho em busca do estilo vai pelos dois eixos, um deles vertical (a ascendência influenciadora), o outro horizontal (o encontro consigo mesmo e suas letras). O terceiro eixo é o temporal, sempre pela tangente, marcado pelo que se come a cada minuto, a cada refeição. Ler também é manjar. Quem mais me influenciou foi Clarice e Poe. O que mais me fez escrever foi Lima Barreto. Os que mais zombaram de mim foram Borges, Rosa. Os que mais me cativaram foram Gabo e Machado. Mas meu mundo foi moldado, de alguma forma, por Agatha Christie, Adelaide Carraro e Cassandra Rios. Aliás, Cassandra resumiu minha vida, que repito atualizando a pessoa verbal: Sou uma criatura simples, comum, cheia de problemas, tristezas e amarguras. A vida de escritor tem sido muito dura para mim.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
São dois: O Crime do Cais do Valongo, de Eliana Alves Cruz, e Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves. Mas quem quiser também pode pesquisar, comprar e ler O Velho Que Lia Romances de Amor, de Luís Sepúlveda.