Ademir Luiz é escritor, autor de “Hirudo Medicinallis” e “Fogo de Junho”.

Porque escrevo
Qual a semelhança entre Mussolini, Napoleão, Goebbels e o nosso caseiro José Ribamar Sarney? Todos esses senhores desejavam ser escritores e desistiram diante das dificuldades, optando por tentar algo mais simples: dominar o mundo. Impossibilitados de usar a caneta, tiveram que se contentar com a espada, ou pior, degradaram a caneta usando-a para dar canetadas. De uma maneira torta, foram humildes.
Acredito mais em políticos humildes, ditadores humildes, imperadores humildes, generais humildes do que em escritores humildes. Escritores humildes, fatalmente, são mau escritores ou apenas escrevem, não são escritores de fato. Alguém que pretende comunicar algo ao mundo, que se aventura a criar personagens críveis e multifacetados, que expõe relações humanas, que é o demiurgo de universos fantásticos, esse alguém precisa ser muito ousado. Escrever exige perseverança, personalidade e, às vezes, até talento. Não uso a palavra vocação porque não acredito em vocação, mas acredito que quem se dispõe a escrever só o faz porque não consegue evitar.
Existem muitas ocupações mais fáceis, valorizadas e agradáveis. Tenho certeza que Willian Faulkner estava mentindo quando desdenhou a própria obra, afirmando que escrevia simplesmente para ganhar a vida. Se fosse apenas isso, Faulkner faria outros tipos de livros, de carpintaria mais simples e economicamente mais rentáveis. Faulkner certamente produziria excelente “pulp fiction”, mas optou por compor com som e fúria alta literatura, esforçando-se para que fosse muito, muito alta, um Everest de letras.
Discordo dos autores que afirmam que “escrever é uma profissão como outra qualquer”. Em paragens mais civilizadas, pode até ser. Não no Brasil. Não existe uma indústria consistente de livros literários no Brasil. Por extensão, praticamente não há escritores profissionais no país. Via de regra, mesmo os raros autores que participam das engrenagens do sistema de produção do objeto livro costumam ganhar mais com traduções, encomendas, palestras e atividade jornalística do que propriamente com sua produção “artística”. Notem as indiscretas e incômodas aspas acossando, cercando, oprimindo a palavra “artístico”. As poucas exceções são verdadeiros cisnes negros e costumam ser fenômenos mais sociológicos do que propriamente literários. Portanto, com poucas possibilidades de se profissionalizarem, ganharem dinheiro de verdade escrevendo, quase todos os escritores brasileiros almejam serem artistas. E um artista não pode se render a proselitismos. Escrever não é uma “profissão como qualquer outra”, é uma atividade muito inusitada.
Estou sacralizando a atividade de escritor? É possível, mas a experiência mostra que mesmo os profetas da humildade que defendem que “escrever é uma profissão como qualquer outra” possuem seus autores de estimação. Ídolos que dificilmente admitiriam que são “profissionais como quaisquer outros”. Quem compra e lê biografias de Shakespeare, Thomas Mann, Salinger, Proust, Machado de Assis ou Faulkner está cometendo um ato de adoração, mesmo que não admita.
As motivações para escrever podem ser as mais variadas, gestadas pela cabeça ou pelo baixo ventre. Michel Foucault afirmou que escrevia para atrair garotos. Fernando Pessoa foi mais sutil, declarando que escrevia para salvar sua alma. Gabriel García Márquez admitiu sua carência ao confessar que escrevia para que seus amigos o amassem mais. Justo. José Saramago mudou de ideia: começou afirmando que escrevia porque não queria morrer e depois mudou para a versão de que escrevia para tentar compreender o que é ser humano. E agora José? Qual a versão mais sincera? Acredito que a primeira. A segunda me parece bem-intencionada demais, politicamente conveniente demais, feita sob medida para ser replicada em agendas e apresentações de entrevistas. Paulo Francis, cínico, ralhava que escrevia romances para ter fama, glória, dinheiro e amor, “essas coisas comezinhas da vida”. Triste lembrar que sua literatura costuma ser apontada como pontos baixos em sua carreira jornalística. Injusto. Nosso Mário de Andrade fez uma boa síntese, mostrando-se nem tão abnegado nem tão ambicioso, ao definir que “se escrevo é primeiro porque amo os homens. Tudo vem disso pra mim. Amo e por isso é que sinto esta vontade de escrever, me importo com os casos dos homens, me importo com os problemas e necessidades deles. Depois escrevo por necessidade pessoal. Tenho vontade de escrever e escrevo. (Isso é pro caso dos versos.). Mas mesmo isso, psicologicamente, pode ser reduzido a um fenômeno de amor porque ninguém escreve para si mesmo a não ser um monstro de orgulho. A gente escreve pra ser amado, pra atrair, encantar”. Palmas, Mário, palmas!
Mas porque eu escrevo?
Se essa pergunta me fosse feita em uma mesa de bar, provavelmente, responderia com uma fuga em dó menor: “se não me pergunta por que escrevo, sei porque escrevo; se me pergunta por que escrevo, já não sei”. Daria um amém para Santo Agostinho e continuaria falando de futebol.
Não posso ser tão displicente, e covarde, diante da mesma questão posta de modo oficial, em um texto escrito.
Por que escrevo?
Se é para ser oficial, serei também oficioso.
Refaço a indagação, repartindo-a aristotelicamente: por que escrevo textos acadêmicos? Por que escrevo ensaios? Por que escrevo crítica? Por que escrevo quadrinhos? Por que não escrevo poesia? Por que escrevo ficção?
Primeiramente, a verdade é que escrevo por diferentes motivos cada um dos gêneros em que me aventuro. Nem sempre por motivos que podem ser ditos em voz alta.
Por que escrevo textos acadêmicos? Para ganhar a vida (olá, Bill Faulkner!). Oficialmente, e até para mim mesmo é difícil acreditar, sou um acadêmico. Professor doutor, especializado na história das ordens de cavalaria medievais. Bolsista pesquisador do Instituto Camões, com tese indicada em prêmios importantes e devidamente publicada para alimentar meu currículo Lattes. Curiosamente, escolhi ser professor graças a uma entrevista do físico César Lattes. Ele disse que a profissão de professor era a única que tinha duas férias por ano. Heureca! Aquilo me pareceu uma boa ideia.
Portanto, escrevo textos acadêmicos porque preciso escrever ou estou fora do circuito universitário. Só tomo duas precauções. Primeiro, sempre escolho pesquisar temas que realmente me instiguem. Segundo: tomo cuidado para jamais entediar o leitor. Artigos acadêmicos não precisam ser pedras de Sísifo. Podem ser escritos com técnicas advindas do gênero ensaio, sem perder o foco na objetividade “científica” (eis as aspas novamente) ou nas informações que precisam ser transmitidas. Regularmente, sou criticado por isso na comunidade acadêmica. Em minha defesa, cito Voltaire que tinha como regra não entediar em sua atividade de historiador e escritor.
Por que escrevo ensaios? Para “lacrar” e “mitar” ao mesmo tempo na internet. Simples assim. Sou adepto do bom e velho polemismo literário, que tem em Voltaire uma espécie de patrono e já contou com nomes célebres como H. L. Mencken, George Bernard Shaw e Paulo Francis em suas fileiras. Hoje, em tempos de mídias sociais, o ensaio polêmico deformou-se, regrediu, transformando-se em uma máquina de caçar likes e deslikes (que tecnicamente valem o mesmo). Eventualmente, acabei me tornando um dos mais infames e degenerados representantes brasileiros do ensaio contemporâneo de internet, gênero literário também conhecido como “mamilos”. O historiador e sociólogo Eliézer Cardoso de Oliveira definiu que minha técnica ensaística é a da desconstrução de narrativas. Uso minha experiência como historiador para desencavar informações esquecidas que podem desmontar estruturas que parecem sólidas, mas que, examinadas de perto, carecem de substância. Quem sou eu para dizer que o doutor Oliveira está errado? Só acrescento que meus ensaios são, sobretudo, peças de humor: humor negro, humor nonsense. Meus ensaios são como esquetes de Andy Kaufman ou do Monty Python. Nem sempre são sérios, as vezes são mais sérios do que parecem. No ensaísmo, sou sobretudo um comediante.
Se no ensaísmo sou um comediante, na crítica sou um anjo exterminador. Raramente escrevo sobre o que gostei. Via de regra, faço isso apenas sob encomenda e em casos muito especiais. A irritação, a bile, é o combustível de minhas resenhas. Se leio um livro ruim ou vejo um filme que me decepcionou, não raramente vejo-me instigado a verbalizar os motivos. É espécie de purgação do veneno estético ao qual fui submetido, um exorcismo dos erros cometidos pelos autores da obra. Novamente, tenho duas regras. Primeiro: jamais ataco a pessoa física do artista, apenas a produto. Segundo: seguindo os ensinamentos da diva Susan Sontag, no artigo clássico “Contra a Interpretação”, só levo em consideração o que está efetivamente presente na obra. Intenções ou sugestões pouco explícitas não contam.
Quadrinhos? Sim, também escrevo quadrinhos. Desenho e escrevo. Mas não publico com meu traço. Voltando ao início do texto, os escritores são orgulhosos, mas também precisam ter senso de realidade e da extensão de suas capacidades. Faço alguns rabiscos, mas não sou desenhista. Sei e reconheço isso. Minhas experiências com literatura gráfica foram publicadas com o traço de artistas de verdade, que trabalharam a partir de minhas páginas, adaptando-as e melhorando-as. Não escrevo roteiros de quadrinhos com texto corrido, mas traço uma espécie de rascunho, de croqui, do que será a produto final. Esse método me ajuda a pensar nos layouts das páginas e na evolução da ação.
E poesia? Não escrevo poesia. Sei que é senso comum imaginar que todo mundo que escreve, cedo ou tarde, acaba poeta. Não eu. Assim como Henry James, orgulho-me de jamais ter cometido um verso. Não tenho voz poética. Poderia emular meus poetas preferidos, mas seria falso, artificial, intelectualmente desonesto e até meio bobo. Repito e reforço: orgulho não é cegueira.
Finalmente, por que escrevo ficção? Não escrevo para ganhar a vida, escrevo para não perder da vida. Acredito que de vez em quando consigo fazer literatura, ou seja, moldar a linguagem em ato estético, mas reconheço que primeiro sou um leitor e um cinéfilo e só eventualmente sou um escritor. Ser orgulhoso não elimina o senso de proporções. Perguntaram-me “por que escreve”? Posso considerar que trabalho com literatura? De algum modo sim, já que minhas atividades profissionais na universidade incluem pesquisar e ensinar sobre literatura. Meu objeto de estudo são os grandes mestres ou as grandes farsas. Mas, e quanto a minha literatura pessoal? Mesmo nas vezes em que consigo transformá-la em dinheiro não deixo de me sentir um amador. Ser amador dá liberdade, mas não evita a responsabilidade.
Acredito que minha literatura é uma amálgama da responsabilidade com os fatos que tenho na produção acadêmica, o humor e o polemismo que cultivo no ensaio, o senso frenético de narrativa que procuro aplicar nos quadrinhos e o cuidado com os detalhes e construção de personagens que cobro dos outros em minhas críticas. Não é um coquetel de difícil compreensão, as partes se encaixam sob a égide da verossimilhança, mesmo nos momentos mais transloucados de ironia. A piada só tem graça se fizer sentido dentro de sua proposta, por mais inusitada que seja.
Coloquei em meu primeiro romance publicado (não foi o primeiro escrito) que todos somos, principalmente, a somatória de nossas leituras, filmes que assistimos e músicas que ouvimos. Ainda considero isso verdade. É difícil precisar, mas creio que minhas maiores influências literárias são Jorge Luis Borges e Umberto Eco. Há outras, mas essas duas saltam aos olhos, não são nada discretas. Os dois gostavam de promover sofisticados jogos eruditos com a tradição cultural ocidental e oriental. Misturavam o erudita, o pop e o popular, o sagrado e o profano, o trágico e o cômico, o científico e o pseudocientífico. Quando faziam isso é como se piscassem para seus leitores, jogando para eles a responsabilidade de compreender as referências, sob pena de passarem por tolos, despreparados ou desatentos. Não é o mosaico realista enciclopédico que James Joyce propôs em Ulisses, mas um lúdico e didático exercício de esconder e revelar.
Se tiver que definir minha produção literária, diria que é uma literatura de piscadela. Uma literatura de flerte. Escrevo para piscar para meus leitores, esperando que eles pisquem de volta. Não importa se são sutis piscadinhas com um olho só de cumplicidade ou frenéticas piscadas raivosas e indignadas.
Mas poderia ser pior, poderia ser Mussolini, Goebbels ou Ribamar.
* Entrevista publicada originalmente em 14 de fevereiro de 2020, no comoeuescrevo.com (@comoeuescrevo).